sábado, 4 de maio de 2013

75 - ALEATÓRIAS HISTÓRIAS - INGRATIDÃO NÃO TEM VEZ

Reprodução [sítio abaixo]
No fim de tarde, ele abre todas janelas do apartamento invencível e inalcançável por qualquer um, a grande porta corrediça que dá para a sacada, põe um espreguiçadeira lá e senta-se com um conforto inigualável; o conselheiro-mor, felinamente caminhando em silêncio com o leve balanço da longa cauda laranja e marrom, avança até ele e aninha-se em colo, ja ronronando. Rex, ao contrário, ainda prefere brincar de correr atrás da bola de brinquedo mesmo depois da longa caminhada pelas descidas e subidas do bairro.

Telefone tocando algumas vezes já, mas sem menção alguma de atendê-lo: vira na hora do almoço que era Maximiano. Desde o domingo que quase almoçaram juntos, decidira que afastar-se dele tornar-se-ia obrigatório, porque se relacionar amigavelmente com alguém tão carregado de ranço brucutu não consta em seus planos de vida.
Planos de vida com os outros seres aqui de São Paulo, quer dizer, se se apresentarem com o viés troglodita.

Só mesmo em seu trabalho. E mesmo assim sem participar de amigo-secreto, tampouco concordar em se reunir para beber toda sexta "porque é sexta", como dizia seu agora secretário. Soube que ele tem a fama de muito legal no trabalho, ao mesmo que adquiriu a imagem de "esquisitão" da editora por não ir aos eventos sociais da mesma, tampouco frequentar aniversários (incluídos não ir aos de sua equipe direta) e tudo que se relacionasse a isto.

Divagando com o cigarro nas mãos e um copo de uísque americano pouco tocado e já muito suado, ele ainda percebe com se surpreende com as pessoas mais próximas, mesmo que esta tal proximidade seja manter uma distância razoável (conceitos de antítese?). Nunca imaginara que o metálico amigo, adquirido ao longo dos últimos quatro anos quando o conhecera na padaria de renome, pudesse ter tamanho amargor preconceituoso com tão pouca idade. E ele o tem. E havia expressado sem mais e sem menos toda sua fúria machista e homofóbica àquele dia. Porém, para ele - nosso personagem - o que mais lhe causara espécie fora o fato de, a estes fatores, ele agregar a ingratidão.

Rex se aproxima e com meio palmo de língua para fora, cansado que só vendo, deita-se no chão ao lado dele e o cutuca na mão com a cabeça parecendo dizer "Ei, estou aqui! Faz cafuné na minha cabeça para eu dormir?". Distraí-se de tudo o que pensava e faz a vontade do príncipe herdeiro.
Pelo fim de tarde, uma leve brisa amena de outono, ainda que um tanto seca, lhe traz uma sensação de alívio que faz lembrar que ser ingrato é o último de seus defeitos.

Eles, no trabalho, me têm como um esquisitão eremita, um Urtigão urbano moderno. Que bom que seja assim, pois aprendi muito neste mais de 40 anos, quase 50 de vida. E de uma coisa eu sei e eles também sabem: ingratidão profissional - que é a única que eles poderiam conhecer de mim - eu não possuo. E transgredindo para a vida social... Se bem que de sociabilidade eu pouco gosto e pouco sei exercer hoje em dia, nunca pequei por ser ingrato e fiz muito esforço para me redimir quando assim fui alguma vez. Hoje, minha luta em não ser ingrato é grande e diária. Defeito bem distante de mim.

Antes de entrar no mundo do sono, o telefone celular toca mais duas vezes: por certo é o ingrato querendo falar alguma coisa, explicar sabe-se lá o quê. A terceira tocou e ele nem ouviu da sacada. Sem vez para os ingratos.

http://www.zazzle.com/ingrate_tees-235127811295670058

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