domingo, 30 de outubro de 2016

60] CENÁRIO SP - O ARTISTA DA CIDADE

Arquivo pessoal - Grafites na Vila Mariana/SP
No fim da feira, aos domingos, ele começou a se perguntar o que o faria mudar de cidade e recomeçar em um novo lugar, uma nova urbe, um lugar distante. Queria, com isto, apagar frustrações advindas do estilo de vida que adquirira quando veio morar em São Paulo.

Enquanto isto, saboreava um pastel de carne e tomava um legítimo caldo de cana, puro, muito gelado, cheio de energia do açúcar da cana.

Fugaz pensamento. Um artista igual a ele poderia viver ao sul do Equador livre e destemperado, transgressoramente em alguma outra cidade me terras de Vera Cruz?

Tornara-se um atento observador das coisas e das pessoas da grande cidade. E como existem pessoas variadas, para todos os gostos aqui. Arte para todos os apetites vorazes, cultura para estes humanos que trabalham dia após dia e noite após noite.

Iniciara, lá pelos idos de 1990 na poesia erótica; permaneceu escrevendo nas antigas máquinas de datilografia elétricas. Ainda hoje guarda, tudo devidamente escaneado, os antigos originais. Ao conhecer quem amou por toda a vida até agora, fez do computador seu maior aliado nas longas noites de inverno paulistana. Escrevia sem parar, lendo do mesmo tanto. Consumia literatura brasileira livro seguido de livro o que fornecia ideias para seus próprios escritos. 

Passou para os autores portugueses, daqueles de fins do século XIX aos angolanos e moçambicanos deste atual tempo. Literatura no idioma que falava e escrevia o atraía. Pôde aprender novas expressões e diferenciadas formas de empregar determinadas palavras em um contexto sintático. Daí, veio a liberdade para escrever contos eróticos que resvalavam na pornografia explícita e de linguagem chula. Acaba se masturbando toda vez quando findava uma sessão. Verdade que isto ocorria porque nas noites de verão trabalhava em frente ao computador nu com uma larga xícara de café com pingos de uísque americano. Sentia-se bem assim

Tanto acontecia isto com muita frequência que quando entrou no curso de escultura apaixonou-se por trabalhar nu. Modelos vinham e passavam pela sua pequena e aconchegante casa em uma pequena vila arborizada da Vila Mariana. "Todo mundo nu" era o que dizia quando os contratava para o trabalho. Gostava daquilo, do cheiro dos corpos, dos pés que cainhavam pelo chão liso espalmando largueza pelo chão, das protuberâncias e principalmente das reentrâncias permitidas ao léu no livre espaço de trabalho. Argila, depois mármore.

Jovem fazia tempo que não era. E em uma destas tardes de outono, quase gelada,  apresentou-se-lhe um grafiteiro que o convidou para pintarem e bordarem a cidade logo mesmo àquela noite. Havia velhos galpões na Mooca que precisavam ser atrelados à arte urbana tipicamente paulistana. Teve um assombro pela descarga de adrenalina quando começou o trabalho: fez um desenho de sua última escultura, todo em preto brilhante com nuanças de prata escura. Ao voltar, demorou-se para dormir tamanha era a excitação provocada - bem, claro que a companhia teve seu quinhão na tal insônia.

Voltando da feira declarou seu amor e seu pau duro à cidade de São Paulo.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

VIAGEM CCCX - TODOS OS VENTOS DO MUNDO


em cima do edifício mais alto, no heliponto mais elevado de São Paulo, após subir os 40 andares pelo elevador vazio cheio de rangidos, em uma madrugada de outubro, fria para a época, ele em pé, em meio a tempestade que começava majestosa em raios e trovões e relâmpagos, os braços curvados e a roupa pesada...

os dias passam

as pessoas se vão

os vãos ecoam, aumentam,

os ecos se distanciam da realidade

os ratos abandonam

os navios afundam

os rotos roem sobras

a chuva cai pela madrugada

os sonhos vem

eles embalam dias melhores

que não virão (?)

os sonhos em cores, sem dores povoam

os tratores da vida aram a terra aqui dentro

e lavram fincando raízes, criando caminhos

recônditos, sinuosos e profundos

as ondas vêm, voltam, lutam, batem nas rochas

os rochedos resistem braviamente 

as rimas desaparecem

os versos versados em amor vagam

e os ventos que levam, trazem, arremetem?

todos os ventos do mundo ali convergiram

e em alguns instantes ele levitou centímetros do chão

(sem magia, sem truque)

sentiu seus pés balançarem e os sapatos pretos afrouxarem o aperto

(os cadarços pareciam desamarrados)

quis ficar assim: os ventos do mundo ventando

ele levitando sozinho

as nuvens carregadas plúmbeas

raios ao longe, trovões graves por ali

sentia as gotas chicoetando seu corpo

e então... ele caiu no centro do heliponto

desfaleceu-se, mas antes os pingos lhe escorriam pela careca

pela barba ruça hirsuta e pôde então dormir

até que seu ouvido encharcado de água o acordasse tempo depois

e ainda todos os ventos do mundo estavam ali

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

VIAGEM CCCIX - O $ E A FELICIDADE

Arquivo pessoal - Estádio do Pacaembu/SP

---- $ não traz felicidade

---- O que traz esta coisa que você chama felicidade

---- Tantas coisas: sentimentos puros, um sorriso, rir com amigos

---- Entendo. E o que o $ traz então?

---- Eu sei o que ele não traz.
E ri debochadamente

---- Ah, tudo bem. O que ele não traz, o que ele faz, pergunto em seguida?

---- Amizade verdadeira, amor verdadeiro, solidariedade

---- Nossa, que sono me dá este argumento infantil. Pueril, diria.
E boceja gostosamente

---- Você não acredita? Pois deveria

---- Deveria nada. Se o $ não traz felicidade, qual é o seu oposto? E este oposto traz? Fala.

---- O dinheiro não tem oposto, pelo menos não um que seja palpável.

---- Errado. Acertadamente você errou com muita exatidão. O oposto de $ é pobreza, é infelicidade, é briga, é humilhação. Hu-mi-lha-ção, escandindo cada sílaba só pra você tentar entender. 

---- A verdade não vem com o dinheiro, com cifrões.

---- O dinheiro pode tudo...

---- Falso. Isto é mentira. Saúde, por exemplo o dinheiro não compra.

---- Compra melhores condições para tratar de sua saúde. Tenha um câncer na medula, tenha AIDS, tenho um enfarto e vá ser atendido no SUS. Que patetice sem tamanho. 

---- Um amigo de verdade o $ não compra.

---- E quem precisa de um amigo pobre? Obrigado, eu declino.

---- Um amigo que não se importa se você tem X ou Y...

---- Prefiro estar com conhecidos e ter o Z, o A, o B, o C, o D e todo o alfabeto.


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

VIAGEM CCCVIII - LAMA, CHUVA E LÁGRIMAS

Arquivo pessoal - Parque do Carmo, São Paulo
molhando a terra, molhei-me, deitei-me e igual a um cão
e rocei, chafurdei e mergulhei na lama sem enguiço
e fiquei e me quedei assim: vendo tudo de uma perspectiva diferente
sentido as gotas, ora pequenas e leve, ora grandes e pesadas a me molhar
todo o meu corpo, nas reentrâncias e protuberâncias

deitado...
via as roseiras balançarem pela chuva, pelo vento,
as orquídeas encarapitadas no grosso tronco da figueira 
a vergarem sem medo da queda possível
insetos afogados, pássaros em beiras para se protegerem

imaginei então, 
naquela tarde de chuva que uma nesga de sol rompeu as nuvens gris
e vi os pingos formarem pequenos arco-íris em minha lente de óculos,
e continuei imaginando ali eu e você deitados olhando para o céu de São Paulo
neste parque perto de casa e dentro de nós (dentro de minha cabeça)

tanto que quis ser a chuva que lhe molhasse, que lhe inundasse de prazer
em uma tarde quente de verão pelo nosso calor de amor
tanto quis ser a chuva para conhecer cada parte de você, 
para escorrer, para penetrar, para refrescar...

alguns convivas de parque nem podiam imaginar tamanha criação
as crianças vendo um marmanjo a chafurdar na lama riam de tanta inocência
e a chuva só me fazia querer ficar mais e mais ali
com o sol aparecendo timidamente dava um tom de contradições.

fiquei por ali minutos, eu e a lama
assim que a chuva começou a judiar do meu "pobre" corpo
em pedrinhas de granizo gelado, gelado
chacoalhei-me, dei dois pulos, camiseta na cintura da bermuda

e então que grande amiga a chuva foi:
nem senti o salgado das lágrimas
nem ninguém as viu escorrerem
(acho que mereci esta pequena ajuda)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

VIAGEM CCCVII - PARA ENGANAR O CLICHÊ

Arquivo pessoal - Moema, São Paulo/SP
clichê, a morte é o maior de todos eles

sempre vem, sempre aparece e é para sempre
sem remédio
sem paliativo também...

ou sim?
alguns instantes e vida
para remediar aquilo para o que não tem cura

o clichê
podemos então... Devemos então tomar algumas pílulas a seco
de maneira certeira:

que nós dancemos até o fim
requebrando por ora, colados em outro hora
até cairmos juntos
até acenderem as luzes
para iluminar o escuro clichê

que a gente caminhe entre as dores
entre as alegrias
pelas ruas e avenidas, pelas calçadas
até o cansaço
para enganar o clichê

que a gente durma junto
em um tépida noite de outono
que chova, chova sem parar
baixinho e miúdo, renitentemente,
para o clichê absoluto dormir um pouco

que ouçamos mais um ao outro
que nos mostremos verdadeiros, reais
feios, sujos e malvados por vezes,
e lindos e limpos da mentira e bons na sinceridade em outras
para o clichê aprender o que é a cumplicidade

que nós vivamos parceiros
em saudáveis e doentes momentos
de briga, de amor, de sexo, de repulsa,
de tudo o que o ser humano faz quando ama
para o clichê se atente aos momentos únicos

porque se ele vence - e vence todo o tempo -,
resta-nos não bater de frente
sobra então uma vida de "esquecimento" do senhor absoluto
do senhor infalível,
do clichê da morte que anda lado a lado a nós 

sublimar a morte traz um certo esquecimento

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

59] CENÁRIO SP - O SILÊNCIO NO CENTRO DA CIDADE

Arquivo pessoal - CCBB/São Paulo
Uma construção meio escura com muito cinza entre o preto do último portão e o sol que iluminava lá fora tornando o ambiente solitário com toques de marrom-café no teto; uma quietude nada usual para o ziguezague frenético da cidade que nunca para, que nunca dorme, que sempre trabalha. Que se parecia com ele àquele tempo. 

Engenheiro de formação, estava a procura fazia semanas de um novo espaço, de preferência um terreno; só que como difícil tornara-se achar um bom terreno vazio no Centro de São Paulo, ele partiu para construções antigas não tombadas que poderiam ser postas no chão ou, quem sabe, aproveitar e realizar uma boa reforma. 

Lufadas de ar batiam sem piedade no grande portão promovendo o rangido habitual e clichê do filme de terror de A a Z. Lá pelas tantas estas lufadas se tornaram correntes de ar que, então sem piedade - como foi escrito - começaram a uivar pelas frestas  das janelas e das portas intermediárias.
Tudo no centro de São Paulo. 

O dia ensolarado estava com temperatura de verão torrando as cabeças, embebedando as partes de todos fazendo a roupa grudar nos recônditos e também dos descobertos lugares.

Mas não naquela construção. 
E foi lá que ele pôde deitar-se sobre o mármore italiano, recostado à parede desenhada com motivos brasileiros, como terra, água e pássaros. De fora, ele conseguia (não porque esforço fizesse, apenas porque ele ouvia bem) escutar alguns barulhos ininteligíveis... 

Algo como um ronco longe de uma moto deslizando pelo asfalto quase derretido. 
Visitava o local porque seu cliente estava à procura de uma construção de no máximo cinco andares para poder instalar um clube noturno que, pelo intenção, fugiria aos moldes tradicionais dos brasileiros tradicionalista.

Àquela, por hora, não era sua preocupação. Apenas deitou-se e seguiu assim por um bom tempo. Pensava, ao olhar pelo local quase escuro, que bem que poderia ficar por ali e morar ali. Silêncio, escuridão quase completa, o friozinho de verão gostoso; o chão gelado deu-lhe um prazer primário, de absoluto conforto.

Dormiu devagarinho lutando contra o sono apenas para que este o vencesse; e venceu. Fazia isto sempre para demonstrar para ele mesmo que o sono sempre era mais forte que sua vontade de se quedar acordado. Sem ideia de quanto tempo fora da vigília, alguém ao lado apareceu, postando-se ao lado dele; e mais, deitou-se ao lado dele sem qualquer incomodo. Vagarosamente,sem causar alarde. 

---- Também por aqui. Não se assuste. eu estou aqui há mais tempo que você. 

---- Sem susto. Quero saber quem e você. Posso ou é segredo.

---- Pode, mas perguntaria para quê. Nunca me perguntaram... Bem, talvez porque você seja o primeiro a vir aqui desde a construção. Ajudei a fazer este prédio. Era o engenheiro assistente do engenheiro responsável. Faz tempo, viu? 

---- Quem? Quando?

---- O que? Que conversa de destemperados. Em 1932, julho, em plena Revolução Conti... Constuti...

---- Revolução Constitucionalista.

---- Lutei nela. Perdemos, verdade. Mas lutamos o bom combate.

---- Meu avô...

---- Eu sei. Sou eu o seu avô. 

Imediatamente ele fica sentado e toca no seu interlocutor: sem temperatura, ou seja, estava igual a do espaço que estavam.