sábado, 19 de dezembro de 2009

CONTOS - III

Tomo a liberdade aqui de postar mais um trecho de um dos contos que tenho escrito nestes últimos anos. Tenho mesmo desejo de vê-los impressos em preto em superfícies brancas, lisas e com cheiro estalando de novo.
Este é o primeiro da atual série em voga.
Trata de um cara que é viciado em cafeína vivendo praticamente na solidão o tempo todo. Ele discorre sobre suas indignações (como o trecho que escolhido aqui) sem se abster da auto-crítica tão necessária a sobrevivência do personagem. Não há nomes desginando-os e sim críticas (ao mundo... A todos...) ferozes, vulturinas escarnecendo um lado sombrio que ele possue. Ninguém é poupado na espécie humana. Claro, tudo isto regado a muito café.
Aí está:
Incineração às 13h, sem açúcar
(trecho) Capítulo II - Agosto


Ventania “agourenta” (de novo) de agosto. Só se for para quem realmente sofre nestes 31 dias. Ele sabe quem sofre, excetuando os sabedores da periferia, e muito por agora. Bem, são os animais que “se apresentam” na arena daquela odiosa e insidiosa festa do peão no interior do Estado servindo de catarse para os humanos que assistem e que pagam dinheiro por isto. Na verdade, e alguns sabem, o espetáculo é deprimente porque impõe dor aos bichos; e a platéia dos homo sapiens vai ao delírio em um amontoado de bestas-feras que estão lá para ver e sentir o sofrimento extremo. Dizem que o tal do sedém não aperta os bagos dos bois e cavalos.
Mentira! Piada do ano, só pode ser. Ele viu uma matéria com a entrevista de uma veterinária séria que acompanha este suplício – comparável à farra do boi – na qual afirma que sim, são impostos sofrimento e dor aos bichos. Aí um peão qualquer, um idiota qualquer é mais crível, diz que não, que os bichos não sofrem que não se aperta porra dos bagos nenhum (esta é boa... bago... porra).
Mas e as fotos tiradas no instante em que eles corcoveiam na arena construída em versão moderna daquelas que os romanos colocavam os cristãos? Exato, as pupilas estão dilatadas e o olhar parece fixo. Pânico, ô peão idiota! Chama-se pânico! São sintomas básicos de muitos seres viventes do planetinha que transparecem em situações de fuga ou luta. No caso, poderia ser luta, todavia teria que haver igualdade de condições: o macho touro contra o macho humano, ambos de frente um ao outro. Um contra um e só. E aí, o peão idiota, vai continuar a alardear aos quatro ventos de agosto toda sua virilidade?
Pontos para Rita Lee em sua cruzada (tomara não inglória) ‘anti-rodeio’; para aquele qualquer daquelas duplas quaisquer dor-de-corno um excelente par de chifres bovinos (atenção, no sentido literal) a espetar-lhe os fundilhos cairia de agrado, afinal ‘é o amor’, não é? A verdade é que o dinheiro gerado na arena é muito e porque contrariar os interesses dos abastados fazendeiros/industriais, não é verdade? O dinheiro, o dinheiro... E nada mais vale do que ele. É o cão.
Que espetáculo imperdível será quando acontecer o touro contra o homem e aquele ganhar deste.
Ah, o peão possesso dias destes o indagou se ele não comia carne bovina. Come sim e concorda aqui que se afigure como um possível contra-senso uma vez que o bicho em questão tem que morrer – ser assassinado, não é? – para saciar sua fome.
Não é um espetáculo muito digno, só que todos os seres vivos precisam comer (e alguns, tomarem café) para mal e parcamente sobreviver. Ele não fica vendo o bicho ser morto, porque se vir é provável que não coma. E tem mais: é para comer, se alimentar. Não para diversão.

domingo, 13 de dezembro de 2009

MAIS UM TRECHO DA SÉRIE DE CONTOS

"ARQUIVO EM CONTRUÇÃO"

E como a cidade muda nos dias de frio. É, realmente, São Paulo combina muito mais com o inverno porque dá um clima – que clichê – mais europeu abstraindo alguns fatores. Bem lembrado, vou tomar um café na padaria da esquina bem forte e fumar um cigarro. Está frio aqui fora. Porta giratória, sem sensor, e atravesso andando de maneira daquela que de vez em quando eu forço. Nossa fazia isto quando queria aumentar minha presença é... Uma coisa mais de macho mesmo! Meio neenderthal. Que engraçado: neenderthal! Podia ser cro-magnon também. Macho para caralho também. Mas que eu acho que é de macho, eu acho! Balcão em vidro fumê e o cheiro da cafeína se espalhando pelo ar. Delícia. Rindo sozinho de novo...

Frio da pôrra! Mas tem lá suas vantagenzinhas. Nossa, a primeira é que sem dúvida diminui muito a quantidade daquele bicho do demônio! Dos infernos! Que nojo! Porque Deus, que é Deus, fez isto bicho? Ainda bem que lá no apartamento faz ano já que não tem nenhuma barata. Ódio mortal! E quando ela parada mexe aquela pôrra das antenas assim, estou rindo de novo... Quem me visse e ouvisse falando, e mexendo os dedos, ou ia pensar que usei alguma droga ou então que sou louco mesmo. Que asco! Só de imaginar que aquele inseto pode um dia andar em cima de mim acho que vou lavar com cândida de tanto nojo! E na cara então! Bichinho abjeto das profundezas! Pequenos, endemoninhados e repugnantes! Mato todas que encontro na frente! Ódio, muito ódio! Bicho da escuridão! Sem falar que feio que dói. Pára de falar em voz alta! Pára de rir sozinho...

É, acho que vou ter que pedir dinheiro para o Antônio e com prazo de recebimento para daqui bem longe. Mesmo porque as despesas que eu vou ter no fim do ano para eu fazer minha viagem e me adiantar já está separado e destinado. Porque será gasto, sem chances.

Até que está vazio pelo horário, final de tarde. Deve ser a garoa. Ou melhor, agora é chuva mesmo. E não posso esquecer deste detalhe. A chuva cai grossa espalhando como a cafeína muita coisa lá fora. Problemas vários e soluções algumas. Lembrei! Antes, preciso comprar uma mídia, para queimar muito. Dinheiro. Se cada pingo de chuva, aqui, na calçada da padaria, fosse um real. Pôrra, eu ia catar muito dinheiro e resolver meu problema já porque está foda! Não queria ter que pedir dinheiro para o Antônio. Emprestar ele vai, mas não queria

COM QUEM VOCÊ DORME?

AINDA A 'CURIOSIDADE' DAS PESSOAS
A pergunta parece sempre estar na mente das pessoas mesmo que não seja verbalizada, posta para fora, ela está ali, remoendo cérebros, intrigando pessoas e expondo – veladamente que seja – o preconceito dentro de si com relação ao outro.Estamos quase chegando na segunda década do século 21 e olhando para trás vemos como a humanidade avançou em tantas questões como a tecnológica, por exemplo. Esta, aliás, salta aos olhos não é mesmo? E pensar que no início dos anos 90 a grande rede nem existia; a questão ambiental parece que agora entrou de fato na agenda dos poderosos com a preocupação com o efeito estufa, redução da camada de ozônio, o desmatamento desenfreado (como uma paixão cruel às avessas da música), a coleta seletiva do lixo, o uso mais racional da água...Vê-se que a espécie humana anda inquieta com os rumos do planeta. Há avanços, claro. A conscientização de cada um de nós no que se refere ao espaço que vivemos e dividimos e à qualidade de vida são de fato de muito importantes.Mas para ser meio chatinho ainda existem “coisas” nas quais o ser humano parece engatinhar e mais, sem o desejo de levantar e ficar em pé.
Repito aqui a pergunta: com quem você dorme?Não deveria interessar a mais ninguém a não ser a você e ao (à) seu (sua) parceiro (a). Concorda? E se você dorme sozinho (como eu...) também não é do interesse de outrem.
Vivemos nós todos em uma das maiores aglomerações urbanas do mundo com mais de 11 milhões de habitantes concentrados somente na cidade de São Paulo. É gente indo para lá, gente indo para lá e chegando tarde em seus lares depois de exaustivos dias de trabalho. E apesar de vivermos aqui na Paulicéia Desvairada (que comete desvarios desde os modernistas de plantão) ainda existem pessoas que se preocupam com quem fulano (a) dorme.
Mas tem um agravante a esta mórbida curiosidade: se o seu parceiro (a) for do mesmo sexo que o seu, meu Deus do céu! “Que afronta aos bons costumes e à moral não é mesmo?”.
Homens e mulheres gays passam (deveria usar o verbo sofrer, o mais adequado, mas para não parecer um artigo panfletário...) todos os dias de sua vida recebendo olhares tortos, desconfiados, raivosos e tantos mais adjetivos havidos. Para deixar de citar a violência homofóbica expressa em muitas vezes por assassinatos e mutilação aqui mesmo em São Paulo que neste aspecto não difere em nada de outras metrópoles brasileiras.
E então vem à tona o título deste artigo: com quem você dorme?
Como se dormir com A ou B (tem gente que dorme com A e B ao mesmo tempo) fosse determinante de carácter. Ninguém é melhor que ninguém em razão de ser homossexual ou heterossexual.
Na verdade, à pergunta pode-se somar que os gays – homens e mulheres – deveriam procurar a aceitação da sociedade para poderem viver em paz e levar suas respectivas vidas com um tanto mais de dignidade. Discordo em gênero, número e grau.
Porque gays precisam da aceitação do outro para dormir com quem quer que seja? Ora, isto é um absurdo sem tamanho. Aceitar pressupõe permissão, pelo menos é o que parece leitor (a). Então gays devem obter permissão? E para você?
Para mim deve-se respeitar a vida de todo e qualquer ser humano, independente de sua orientação sexual, que por falar nisto, tem gente que insiste em repetir o refrão heterossexista “opção sexual”. É um erro que não é apenas semântico, mas um erro conceitual que implica imputar aos gays a decisão de terem “virado” gays ao longo da vida. Só pode ser piada não é mesmo? Respeito é o conceito chave. Claro que o ser humano é intrinsecamente preconceituoso, basta que olhemos para a história recente para que certifiquemo-nos: as mulheres penaram para conseguir um lugar ao sol; negros agora possuem leis que os protegem da “moral vigente”.
E aos gays? O que foi conseguido juridicamente? Ainda são tímidas as iniciativas que visam proteger estes cidadãos (sim, porque na hora de pagar impostos, votar, cumprir as leis não é perguntado com quem se dorme) e há um longo caminho a percorrer. O espaço para a homoafetividade neste Brasil globalizado precisa ser conquistado. Não é nada fácil, todos têm ciência do fato.
Sabem porque não é nada fácil? Porque as pessoas ainda se importam com quem você, leitor (a), dorme no aconchego do seu lar, seja na rua Frei Caneca, no Centro, nos Jardins, seja em Itaquera, ou ainda em Parelheiros.
Viver escondido e viver proibido de expressar seu amor soa como o livro 1984 em que o Grande Irmão vigia para que não se atentasse contra ‘a moral e os bons costumes’.
Enquanto dormir com alguém do mesmo sexo for um atentado contra esta moral heterossexista dominante, viveremos ainda como se estivéssemos lá na Idade Média, ou o que é pior, bem pior: viveremos como ainda gays vivem em países nos quais ser homossexual é passível de ser mutilado, espancado, torturado e morto (são aqueles que invocando interpretações bizarras justificam a matança em nome de Deus)
Ufa! Vivemos em São Paulo, a verdadeira capital da diversidade humana nestes confins sul-americanos que se não é a Meca para o estrato social representado pelos gays, é, sem dúvida, a cidade que possibilita meios de comunicação para que possamos discutir a questão da homoafetividade. Tomara que assim a gente consiga desmistificar esta “moral” e estes “bons costumes”.
(um adendo: nem todos heterossexuais se comportam como reza a cartilha da moral heterossexista e não se importam com quem gays dormem)