sexta-feira, 14 de setembro de 2012

VIAGEM LXXIII - ESCARRO E TRIPAS; ABUTRES SE EMPANTURRAM

Reprodução [sítio abaixo]
Um carniceiro coçava piolhos das asas, nigérrimas como as trevas de onde decerto veio.
E chegavam cada vez mais, disputando o butim fétido enevoado de moscas varejeiras e seus ovos que deixavam as narinas e a boca aberta de bigatos contorcionistas.

O cheiro das tripas que se vertiam ao chão de lama molhada e fazia-se quase pegar com as mãos, o sangue batido a se destrinchar por toda a sobra abaixo da grande figueira que, por testemunha, mantivera-se calada farfalhando os galhos como que em submissão por nada fazer.
Antes, minutos antes de tudo isto acontecer, o corpo do homem quedava-se tranquilo, descansando ao lado do grande tronco marrom-acinzentando, apenas para lembrar dos minutos que antecederam a carnificina medieval e vil.
Via à esquerda e via à direita; ao centro. Mas a morte cai de cima, do imenso azul feito a escarrada de um pulmão podre e tísico do doente de um hospital miserável, viral e visceral.
Mas antes, minutos antes...

Conseguira escapar do juízo do "bom senso comum" dos "cidadãos de bem", aqueles que são sempre de bem por toda a eternidade infernal.
E a grande escapada com requintes de cinema 3D fora até que fácil porque até esta hora o amor pela vida falava mais alto, tão alto que gritava a plenos pulmões - ainda sadios - para que todos os cantos do planeta soubessem do sentimento mais celestial que pode existir. 
Então, ambos estavam lá, no pequeno quarto cheirando a mofo, do hotel mais de 5ª categoria que poderia existir em qualquer cidade de 5ª categoria do mundo. Tudo revirado pela longa noite que ali passaram se escutando, se embrenhando um ao outro e se olhando como nunca fizeram dantes.
Apenas estavam lá se resolvendo um ao outro sem que nada os ameaçasse, nem mesmo o carcomido senso comum que de tão pútrido empestava todo o ar de fora.
Conheceram-se fazia pouco tempo, mas o tempo não contava nada para o tempo que passaram juntos antes de estarem à sombra da figueira.

Viram-se vorazmente e a paixão à primeira vista, que para os detratores carcomidos não existe, provou-se ser verdadeira e límpida feita a água de nascente que corre e vai encorpando até se encontrar com outra... E o corpo já não é mais separado, o corpo não é mais dois em paralelo. Uno, riscado com precisão e com dificuldade ao léu de tantas outras beiras que se propagam por aí.
Mas o infortúnio rondava como os urubus voam por cima da carcaça. 
Foi uma desdita que não teve nome nem tamanho. Dentre estas desditas, a pior de todas: apenas um dos corpos conseguir fugir e escapar do bando de abutres carniceiros. 

Sucedeu-se então que o corpo que ficou virou um natimorto porque morto já estava, mas recém-nascido para o amor, tornou-se igual àquele feto abandonado aos milhões por aí. Veio a turba. A horda infernal. E começou a impingir dores e logo então, a impingir pauladas, cortes e o destripar chegou célere: um pulo de abutre, de tão rápido (vísceras exalando o ar quente de dentro do corpo logo chamaram a atenção pelo cheiro). As partes moles e os buracos foram brindados com especial atenção e os olhos, a boca e ouvidos... Causavam cartase vulturina pelos bicos afiados, até que adentraram no corpo por todo ele com os pescoços pintados de sangue, escorrendo sebo e e pedaços a cada saída para tomarem ar; para em seguida repetirem o caminho aberto entre ossos.
No fim, levou um escarro no meio das fuças para que o povo do bom senso demarcasse território revelando todo o 'poder e glória' dos carniceiros humanos.

E aquele que fugiu?
Sim, ele nem ao menos foi tangido pelos poderosos, mas cingido de auto culpa, passou o resto de seus poucos anos que vieram relembrando que nada pôde fazer para impedir o butim de bicadas e gritos agudos.

A carcaça sucumbiu em minutos e, empanturrados, os abutres descansavam do forte sol da tarde à sombra da figueira. Uma coçada ali, uma limpada de bico aqui e um sono com o bucho cheio do corpo.

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