sábado, 31 de julho de 2010

CONTO XI

Como fazia muito tempo - como um longo e tenebroso inverno na tundra siberiana - resolvi postar mais um trecho da série contos. Este aqui é o início do Capítulo IV - A Ilha Resiste e versa sobre o treceiro personagem, um brasileiro descedente de irlandês, que juntamente com o grego e o italiano, forma a tríade única. É o mais longo de todos que já escrevi.
Espero que gostem. Valeu!
"Kevin fecha a porta passando a chave tetra. Tinha o jeito mesmo de brasileiro – segundo o estereótipo – na simpatia e gingado em relacionar-se com as pessoas, mesmo que na rua o confundissem amiúde com um estrangeiro. Possuía apreço por vezes nesta confusão atraindo olhares, investidas e ataques. O sotaque paulistano o denunciava em inequívoco e seu português apresentava-se perto da perfeição. O aspecto abrutalhado parecia cativar quem o conhecesse e visse, e se surpreendesse, então com tamanha doçura mensurada em seu coração. Tamanho aspecto de brutamontes funcionava até mesmo no último papel que representara: de um traficante de armas que cometia um estupro no final, causando aflição na platéia.
Formara-se na ECA-USP fazia cinco anos. Conseguira participações em comerciais para a TV sem grande significância; a remuneração era pouca. Foi quando descobriu o talento para as artes gráficas virtuais o que possibilitou ganhar melhor.  Ele voltou-se à bagunça e verificou que muito havia por fazer e, pragmático que se tornara, pensou melhor em não se ater à recente visita romana à suas costas. O convite de passar por lá mais tarde ele aceitara sem que Marco soubesse ainda. Pensou que seria melhor deixá-lo na expectativa, afinal não queria adular mais do que havia adulado o seu vizinho.
---- Arrumar Kevin! Vamos lá, vamos lá, porque eu não quero isto bagunçado por muito tempo!
Matou o restinho de uísque do copo de seu vizinho sem fazer careta. Como uma centelha, rememorou que fazia algumas semanas que ele não ingeria uma gota de álcool. Não que sofresse a chaga do alcoolismo, apenas resolvera diminuir a quantidade e mesmo dar tempo de dias sem beber. O gole fez arrepiar seus pêlos acobreados dos braços e nuca.
Espreguiçou-se, estalou a coluna e ereto resolveu montar as estantes e arrumar os livros e CDs. Versado que não era em usar ferramentas caseiras, penou e machucou-se na mão e depois no pé durante o processo. Ainda tomando conta do novo território, zanzou por todo espaço procurando cantos, reentrâncias, perspectivas, quando aberta a porta da cozinha, ele conseguia ver – se a janela do quarto estivesse aberta – a vista para outros dois prédios. O tamanho do imóvel parecia caber na sala da casa de seus pais, casal agora separado depois de 35 anos de casamento.
Ainda andando, veio à mente encontro com seu vizinho e na quase impossibilidade de ele ter um cara ao lado que é amigo de um conhecido dele. Deveria estar acostumado com o fato porque mesmo a grandeza do número de habitantes que a cidade de São Paulo acolhe não é impedimento para que isto aconteça. O que lhe causou algum tipo de espécie foi a natureza do visitante. Lembrou-se que Marco não falou nada do trabalho nem que tipo de relacionamento tem com o grego. Cheio de si, tentando ocupar espaço para dominar a situação. “Que situação?”, pensou. A postura de quem veio, viu e venceu, como um César em campanha pelas planícies do leste europeu, conquistando terras, que no caso, podiam ser pessoas. E, pela história, a influência romana na ilha a oeste da Inglaterra foi pouca. No que se refere a ele, esta influência não foi assim ínfima. Pensava nele agora, portanto, além de que parecia estar estudando-o enquanto se atinha na arrumação. Comparou seu agora novo vizinho a um colega de classe de colegial. Repetente, tinha dois anos a mais que ele e exercia um controle sobre a classe tal qual um rei cujo reinado tem seguidores e os que não faziam parte da “nobreza”, mas que o temiam. Kevin, sentado nas últimas carteiras, o teve como vizinho durante seis meses desenvolvendo uma amizade que – anos à frente quantificou como profunda admiração – o fez mais popular no colégio do Estado onde freqüentara as aulas. Por desentendimentos dos pais que redundou na primeira separação, ele foi transferido de uma escola particular para uma estadual. Muita coisa mudou no início de sua adolescência e o seu colega teve participação emérita no processo. Reconhecera em Marco Antônio o mesmo peito estufado e o ar de não se abater por qualquer coisa. Teve a sensação que ele, como o amigo da juventude, nunca ficava sem saber o que fazer por apresentar uma solução toda vez que um problema surgisse. Fisicamente Marco e ele não se pareciam; o que denotava a semelhança, para resumir, se apresentava no ar de quem é “o cara”. Depois da formatura nunca mais o viu nem soube nada a respeito. Kevin foi uma vez procurá-lo na casa onde ele morava e encontrou-a vazia, o que o decepcionou. Passadas quase duas décadas, ele não o esquecera".

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