segunda-feira, 24 de maio de 2010

CONTO IX

ENREDANDO VALORES
Este aqui - da série de contos - é um pequeno trecho. Gosto muito deste conto porque é uma história que se passa em um período pré-carnaval, portanto bem brasileiro na gema, mas sem resvalar em uma história carnavalesca pura e simplesmente: um cara, que é pai, é presidente de uma escola de samba perdeu um dos filhos há pouco tempo.
Espero que gostem. Para quem quiser ler mais posso enviar o arquivo todo.
Sempre obrigado pela leitura.
"Lembra nesta hora que esqueceu de ligar para o principal destaque de chão do desfile; e ele tinha urgência porque o carnavalesco havia alertado-o de que aconteceu um acidente com a fantasia da ‘moça’. E bem de quem: a irmã mais velha, que por sinal, morava perto. Bem, pode ser fácil o trajeto só que o desvio devido à interdição da avenida da Aclimação que a CET realizava, vai complicar o trânsito. Lógico que São Paulo sempre tem os atalhos. Uma tautologia geográfico-urbana. Mesmo esfarelado como pó, o melhor é passar direto na irmã e quem sabe, comer alguma coisa por lá mesmo. Uma massa com molho vermelho, de preferência.
            Problemas se derramavam por sua mesa na sede. Seu computador todo em função do grande dia não existindo tempo de se falar no msn, checar seus perfis em sítios de relacionamento pessoal, nada de baixar música pela internet, nem pesquisar sobre culinária portuguesa; o que significa ir nunca ao Paraíso de Dante, na Rebouças, nem despachar no escritório de contabilidade herdado de seu pai. Este fica ali no bairro em uma casa com o pé direito alto, destacando-se das demais vizinhas.
          O escritório fica no caminho. Como ficam no caminho muitas construções que lhe são familiares, desde a Rua Pires da Mota até a Mesquita com Heitor Peixoto e também indo até o Largo do Cambuci. E se tocando no assunto, parentes em profusão se estabeleceram na região vindos de Leiria e do Algarves, no começo da década de 1920. Seu bisavô veio na segunda leva para escapar da ditadura salazarista que ensimesmou Portugal décadas. Pobre período da nação lusitana. Ficou mais na ponta da Europa. Foi bom para o dito cujo que veio para cá já viúvo, e moço, e se casou com uma mulata com samba no pé, neta de negro, espadaúdo, escravo vindo de Guiné Bissau com brasileira descendente de Domingos Jorge Velho, o bandeirante: a existência dele dependeu desta bisavó que conheceu no final da vida com os cabelos bem grisalhos sem perder o riso largo e a competência para fazer a melhor feijoada de toda São Paulo. A mistura não é nada original, ele sabe: português com africano. Daí o apego ao samba conquanto a cidade não precisasse tamanha paixão. Tecnologia, indústria e frio? Parece que não combinam. Mentira para ele. Combinam à perfeição. Tradição, carnaval e calor podem soar mais Brasil, mas é o lugar-comum.
           Hoje domingo, antepenúltimo ensaio geral faltando 20 dias para a apoteose, está completo. Quadra cheia com as máquinas de chopp trabalhando sem descanso e o padrinho arrancando cantadas das moças – e alguns beliscões em sua traseira bem fornida. Os homens em geral pelo visto torcem o nariz, enquanto outros desejam mesmo é beliscar. Do mezanino, ele e alguns convidados: o gerente do banco, o pessoal da contabilidade e alguns do conselho vêem a animação e o suor se derramando. A primeira porta-bandeira esbanja ritmo com sua fantasia quase completa. É uma negra rutilante, professora de ginásio que deve mexer com a libido dos meninos adolescentes. Suas curvas deixam qualquer homem maluco de tesão. O sorriso de um contentamento verdadeiro parece contaminá-lo, e já faz algum tempo. Mas ela, nem sequer lhe dá atenção a suas investidas tímidas. Enquanto fosse ele o diretor-presidente a Unida não mudará de mestre-sala e porta-bandeira, o que garante a ela reinado até o carnaval de 2011."

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