sábado, 28 de setembro de 2013

97 - ALEATÓRIAS HISTÓRIAS - A DOCE VIDA

Reprodução [endereço abaixo]
Dirigindo-se ao café logo após a Praça do Patriarca, no centro da cidade, perto da Prefeitura Municipal, ele já está sob total controle dele mesmo: sem ansiedade, apenas a curiosidade de quem poderia ser a autora, ou autor de todos aqueles recados.

Início de noite, caminhando por edifícios imponentes de arquitetura mais antiga, com detalhes não mais fabricados, ele se sente bem em morar em uma cidade deste tamanho, com tanta gente, tantas construções diferenciadas - novas e espelhadas, velhas e detalhadas. As pessoas por aqui, pelo grande anonimato que somente São Paulo no Brasil todo pode proporcionar pelos seus milhões, são o grande diferencial. Sem praias, sem brisa do barquinho que vai, do barquinho que vem, São Paulo é quem mora aqui: a diversidade, esta força imaterial, incomensurável, os sonhos. Ele pensa que chegar na frente por beleza da natureza é fácil: ela está ali. "Quero ver esta força desmedida tentar ser medida! Eu gosto demais daqui".

Mesa para fora, cheiro de café nas imediações e pronto: chega ao lugar combinado.
Localizado em um canto no qual podia ver quase todo mundo que passa, ele procura desvendar quem pode passar por ali que seja seu conhecido. Estica o pescoço, mexe-se na cadeira acolchoada.

--- Boa noite. Um café senhor? Ou quer ver o cardápio?
Nem nota a aproximação do garçom de sotaque gaúcho, falando quase aos socos, meio seco.
--- Boa noite... O cardápio, por favor. Mas pode me trazer um puro e uma água mineral. vou dar uma olhada no seu cardápio sim. Talvez eu coma algo em seguida.
--- Muito bem senhor. Eu já volto com seu pedido. Com licença.

"No recado, a tal pessoa afirmava já estar aqui. E não vejo ninguém que eu conheça. Pode ser um despiste para me deixar ainda mais curioso? Pode ser, típico de quem tem medo da aprovação. Quer que aprovem, mas tem tanto medo da rejeição, eventual, que esta toma conta da outra...".

Olha o cardápio, na página dos doces, variados para todos os gostos. Tem um que se chama "La Dolce Vita": 2 bolas sorvete de creme, dentro delas colheradas de creme de avelã com chocolate, tudo rodeado com marshmellow, com cacau em pó polvilhado por cima dele todo.

--- Que doce vida comer algo sim. É com este que eu vou.
Murmurando baixo, consigo mesmo.

Preocupação em engordar ele é desprovido por completo: sua leve barriguinha mal se nota, disfarçada mesmo. A vocação de árvore de cemitério não lhe apraz, muito menos será permitida. Ainda mais que o 'morto' está vivíssimo - verdade que não muito usado em conjunto com outrem... 
O café chega primeiro, sorvido com certa sofreguidão.
Ainda com o amargo na boca, a tigela da doce vida - em português mesmo - é posta à mesa.
E uma mão sobre seu ombro é posta também.

--- Tudo bem?
--- Você? Você que mandou todos os recados? 
--- Vim para te matar...
Ele se levanta da cadeira e a surpresa senta. Ele senta de novo.
--- Matar? 
--- De amor. Quero fazer uma história de amor com você. Longa, muito longa.
--- Você não sabe se eu quero. E tem mais, estou bem sozinho. Eu devia...
--- Está bem sozinho? Penso diferente. Quando olho e vejo caminhando, fazendo as coisas, passeando, respirando, sorrindo...
--- Espera! Faz quanto tempo que me segue?

--- Faz quanto tempo que te amo. Esta é a pergunta mais correta. Aliás, a única correta. Mas se quer saber com tanta vontade assim... Vamos lá. Acho que comecei a te amar logo na primeira vez, faz mais de um ano. Nem tinha obtido minha transferência ainda mas já via você de longe, todo "duro" com aquele terno bem cortado. Verdade que nem sempre sorria muito, havendo dias que percebia que certa tristeza tomava conta. O que eu acho que é uma tremenda perda de tempo. Sim ficamos tristes, mas quando eu o via meio desalentado - nem sabia o motivo - até eu ficava triste e tinha ganas de te abraçar apertado dizendo em seu ouvido: "Eu estou aqui. Tudo vai ficar bem. Calma que vai passar". Hoje tenho mais noção dos motivos que lhe deixam para baixo.

--- Tem? Você acha isto mesmo.
A doce vida começa a derreter pelo prato se sobremesa
--- Tenho sim. Sabe porque? Por que eu amo você mais do que tudo. E quero tentar, quero que me dê uma chance. Por isto resolvi vir aqui hoje e tirar a máscara do anonimato. Pode até mesmo me mandar embora.
--- Embora daqui ou da editora?
--- Da editora você não pode me mandar embora, porque eu já pedi demissão. Sério! Assim que saiu, eu redigi minha carta e encaminhei para sua caixa postal. Sem cópia para o grande chefe, só para você mesmo. Está lá, pode ver.
Sim, o secretário que trabalhara com ele em substituição à grávida, agora de licença maternidade, por alguns meses está na frente dele. Falando tudo aquilo, com serenidade de alguém que quer muito a aprovação, mas não que necessita dela. Pelo menos não neste momento.
--- Vou andar um pouco por aqui. Tem uma exposição no Centro Cultural do Banco do Brasil, "Roma em Três Dimensões" e quero ver. Termina esta semana. Fique bem.
Um leve toque na sua mão e o agora ex-secretário se vai, levando o gosto do café com ele... 

Absorto pela revelação, segue-o com o olhar até virar à esquerda na Rua 7 de Abril e sumir no meio da gente que sai do trabalho, aos montes, não sem antes vê-lo se virar para trás e mostrar o polegar para cima.
Quase derretido pelo vento que sopra nestes tempos de primavera fria, fria, ele volta o olhar para o prato e começa a sorver o sorvete com todo aquele doce, aquele "La Dolce Vita". Na primeira e generosa colherada, ele exclama:
--- Isto é muito bom! Deveria ter vindo antes. Comido antes.

http://www.sanjose.com/restaurants/articles/2013/08/05/dolce_bella_chocolate_cafe_brings_specialty_chocolates_to_san_jose

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