sexta-feira, 8 de julho de 2016

53] CENÁRIO SP - NO APLICATIVO DE MENTIRAS

Arquivo pessoal - Avenida Paulista, SP
Quando o relógio bate 14h, ele começa a arrumar a mesa para sair para almoçar; e 13h é m horário, pode-se dizer, cedo, muito cedo para ele comer: o normal mesmo, de quase todos os dias é praticamente um "almojanta". 

Bem, mais para almoço do que para janta: o usual é por ali na faixa das 15h30/16h. Mesmo que tenha uma fome pantagruélica, quando chega em frente ao bufê seu estômago parece parar... Retraído e diminuto seriam adjetivos mais apropriados à caixa de moer comida. 

Hoje venta sem parar, assemelhando-se a agosto. Julga ser uma prévia do mês mais ventoso aqui na Pauliceia. Vento frio de inverno fazendo que ele sinta em partes expostas de seu corpo toda a força desta estação que parece estar se vingando dos anos interiores. É quem em 2014/2015 o inverno, ele costuma dizer, "caiu em uma sexta-feira, lá pelo fim de tarde"; o frio quase não existiu. E ria sem parar. 

Na volta, mais ou menos de barriga cheia, refestelou-se em parklet contíguo ao escritório onde ganhava seu sustento e a pensão devida à filha adolescente que consome 30% do total de seu salário. Acendeu um cigarro e longas baforadas o acalmaram sobremaneira com relação aos problemas que lhe aconteceram horas antes, no trabalho mesmo. Sentindo o vento frio a lhe cortar as orelhas nuas, resmunga algo sobre ter esquecido o gorro... Saca o  moderno fone do bolso da calça social alinhada e vincada e inicia a consulta da tarde no aplicativo para encontros pessoais.

Passa o dedo e se atém primeiro às mensagens da manhã são muitas. De todos os tipos: sexo rápido, fetiches mil, cafés mais tímidos, cervejas mais à vontade e até mesmo de namoro sério e tradicional; fotos comportadas de rosto e de corpo e fotos desinibidas de tudo em detalhes bem íntimos. Uma distração que o absorve e quase que ele se desliga por completo do mundo em sua volta. O sol gostoso e a pança cheia o fazem distraído por minutos a fio.

Nem vê quando dois homens se aproximam. Um deles, o maior, chega primeiro e lhe pede um cigarro; o segundo, logo atrás, permanece calado apenas observando. Assim que ele retira o maço do bolso do casaco juntamente com o isqueiro, é anunciado texto.

---- Obrigado senhor. Estou sem dinheiro, sabe? Morando na rua desde que cheguei aqui em São Paulo. 
---- E você é de onde? 
---- De longe, bem longe. Sou do interior do Amazonas. Três horas de barco até Manaus. Conhece por lá?
A conversa pelo aplicativo foi esquecida por agora. E ele se interessa pela outra história que 
---- E faz quanto tempo que está em São Paulo?
---- Saí de lá em janeiro. Fui para Brasília, mas fiquei só uma semana. Agora estou aqui e buscando emprego. Na rua não é fácil não. Achei que ia morrer de frio à noite. Mas estou vivo, ainda né?
E sorri como quem parece ter total desapego aos problemas.

A conversa segue e o, por hora, morador de rua explica que trabalhava como artesão de artefatos indígenas desde muito pequeno e que tinha o ensino médio completo. Uma história que é comum nestes tempos de forte crise econômica, no qual bons talentos estão sendo jogados fora e mortos, um a um: a morte, neste caso, é psicológica, espiritual e de ânimo.

Esquece-se por completo do aplicativo que chove mensagens uma atrás da outra, em total desalinho com a história que acabara de ouvir. E então, ele fecha a página e vê o homem que lhe pedira cigarro sentar na esquina e estender a mão para começar a angariar esmolas em uma das esquinas mais conhecidas de São Paulo. Em um átimo, liga para uma ONG que impulsiona trabalhos manuais legítimos brasileiros e consegue que, em poucos minutos de conversa, o cara vá até lá para mostrar sua arte em argila e pintura.

---- Olha, acho que consegui um... Bem, acho que é um teste para você se profissionalizar e mostrar sua arte. Aqui está o endereço. Está marcado para hoje mesmo? Você pode? Acho que dá para ganhar dinheiro.

O homem permanece atônito, ou melhor, em um estado que beira à catatonia. Levanta-se depois deste segundos e fica na dúvida em abraçar o seu "novo amigo". Abraçam-se timidamente, mas com intensidade ancestral.

Nunca mais o viu. Soube que, ao ligar na ONG meses após o inusitado encontro, que o então morador de rua agora ministrava aulas e cursos para interessados em artesanato da Amazônia profunda. Àquele dia, antes de entrar no grande prédio envidraçado moderno, voltou-se ao aplicativo e respondeu todas as mensagens que pareciam não condizer com o mundo que o rodeia. "Eu acho que é tudo mentira. Nada é real mesmo", falou em voz alta.





(segue...)

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