domingo, 22 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXX - UM CALOR PARA OS PÉS

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca/São Paulo
Vindo da noite anterior, abriu a porta quase de manhã com os pés molhados pela chuva, pelas poças; fazia tanto frio que ele achava que se escorregasse no paralelepípedo da rua em frente quebraria todos os ossos do corpo enregelado. 

Pendurou o casaco úmido, descalçou os sapatos, os dois pares de meias úmidos e sentiu o carpete da sala trazer algum conforto para ele.

O que mais queria na vida, àquele momento, era a imensa caneca de café fumegante a lhe esquentar. Vibrou com a confortadora ideia e, mesmo sonolento, com frio e fazendo uso de uma toalha felpuda para se secar, começou o preparo do líquido preto.

Tirou a camisa, a camiseta e passando pelo corredor vestindo somente a cueca branca em frente ao espelho parou por um átimo; nem quis ficar se olhando porque o frio de maio o abraçava feito uma constritora. E era a hora, 5h15, que a madrugada mais judiava dos desavisados do outono: 7°C marcava o termômetro no terraço, ao lado da porta.

Parece que até os pelos das recônditas reentrâncias e alarmantes protuberâncias  se eriçaram ainda mais. Pelado, agora somente seus pés, já secos, sentiam o carinho do carpete limpo impecavelmente todas as semanas e seco; nem poderia ser o contrário porque crises de rinite não constavam na sua lista de desejos. 

Viu o quarto e a cama com os três edredons ainda macetados da dormida de horas e horas anteriores... A cama vazia, não é?

Deitou-se como veio ao mundo, mexeu-se um pouco, ajeitou-se e, quase sufocado pelas cobertas que trouxeram um alívio imediato, fechou os olhos cansados; pegava no sono no mesmo instante que punha a cabeça no travesseiro, como sempre.

Sonhou com viagens interestelares a bordo de uma cápsula confortável que cabia apenas ele. Passeou pelo vácuo universal e "aportou" em Saturno e, em seus grandes anéis, pairou observando-os. Sentiu-se imenso em tocar o que é formação de gás. Entretido em tentar sair do espaço de viagem para andar sobre os tais... Caiu; para baixo ou para cima ou ainda para qualquer lado? Foi impreciso porque se lembrou, ainda no sonho, que não havia estas convenções humanas de lado, de canto, de polo, de esquerda e direita, acima ou abaixo... 

Veio o frio na barriga pela queda. Acordou em súbito e sobressaltado. E, por estas "coincidências" que só mesmo a vida proporciona, soou a campainha; soía que ele, deitado, nunca atendia à porta. Nunca. Mas àquele dia atendeu pela fresta amparada pelo pega-ladrão.

E deveria ter atendido mesmo: pediu-lhe perdão, reclamou do frio no terraço, mencionou a saudade, mais uma vez o pedido, apertou-lhe as mãos e se disse um ser humano que erra muito e emendou, porém, que estava ali para reconhecer as burradas recém feitas. "Não é pouco, ele pensou. Sempre com a segurança arrogante habitual... Mas agora sem".

---- Eu errei, é verdade. O que eu posso fazer para que confie em mim?
---- Entra, estou morrendo de frio. Vou fazer um café quente. Suas mãos estão geladas.

Adentraram na casa e uma longa e pausada conversa teve início. Aqueceram-se com as xícaras de café e, em dado momento, abraçaram-se. Choraram misturando lágrimas e palavras, acariciaram-se. Não era tesão (ainda não), mas sim o puro afeto humano de um que reconhece a humildade do outro em reconhecer erros e de tentar repará-los. 

Deitaram-se juntos com os pés se procurando buscando o calor.  O que viria depois... Depois resolveriam.

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