terça-feira, 17 de maio de 2016

50] CENÁRIO SP - DOIS QUE SE ENCONTRARAM NO FIM

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca/SP
(a vida é assim: tem destas e sabe-se lá quantas mais ela tem...)

Sublimava quase tudo, até mesmo o apenas razoável salário que recebia pelo tanto de trabalho que tinha pelos meses que se seguiam de anos seguidos - não ganhava tão mal, mas era insuficiente. 

Vinha de São Miguel Paulista todo dia para Higienópolis onde trabalhava como garçom em um restaurante de comida japonesa; ele vinha da zona leste mesmo, já pais vinham mesmo do interior de Pernambuco.

Não sublimava quase nada, inclusive o reacionarismo burocrático das repartições públicas, onde tinha que ir nestes tempos de papelada de morte de seu pai, emérito no cargo estadual. 

Vinha do Jardim América todo dia para estudar na faculdade (sua terceira tentativa) de administração e marketing, localizada ali na Barra Funda; filho de uma artista plástica muito em moda nos anos 1990, sua família toda era de quatrocentões descendentes Paes de Barros.

Nunca haviam se encontrado; praticamente da mesma geração, ambos não sabiam, entretanto possuíam gosto para música parecidos, também gostavam de ir ao cinema e correr em parques. Sim, um no Parque do Carmo, outro no Parque do Ibirapuera. Até mesmo similares eram no porte físico e agora mais ainda no barba cerrada. Musculosos não eram, tampouco magros: um meio termo entre isto aí. Altura 1,80, pouco mais, pouco menos, bem próximos.

Inglês, natação, programas de computador, curso de roteiro de cinema; futebol, violão, técnico em mecânica, capoeira. Ambos distantes um do outro, ainda, como no passado.  
eis que, por fim, se encontram ali nas imediações da Rua da consolação, bem perto da Praça Roosevelt. Daquelas coincidências que vida prega - se é que se pode chamar um fato inusitado de coincidência - e só mesmo em São Paulo, a cidade da dúzia de milhões, ambos se esbarraram na entrada do caixa eletrônico do banco milionário de capital privado.

Ele, da área nobre, se sacudiu para não deixar cair o telefone do outro no chão.
---- Desculpe-me, estava distraído. Seu telefone, peguei a tempo.
---- Tranquilo. Estou com pressa e na correria, porque preciso pagar isto ainda hoje e ir trabalhar. A manifestação está descendo já está na Igreja. 
---- Manifestação? Eu pensei que eles estavam vindo da República.
---- São duas então? Hum... Isto vai se complicado. 

Sirenes, rojões, latidos, cavalos, soldados da PM e o grande murmúrio já próximo, como o da multidão que já se escuta com nitidez. Saíram do banco com pressa, mas foram obrigados a voltar incontinenti, os dois se estabacando no chão; a briga começara em três frentes: policiais versus os que vinham da Paulista, policiais versus os que vinham do Centro e, finalmente a mais renhida, o pessoal a favor versus o pessoal contra.

Correria, bombas de efeito moral, coquetel Molotov disparados, gás lacrimogênio. Trancados no caixa, separados da grande confusão por centímetros de vidro tão-somente, o que não impediu de o gás entrar e começar a pegar nas vias respiratórias. Olharam-se, depois para fora e viram que o embate estava se quedando mais e mais violento. Helicópteros.

---- Não estou conseguindo respirar. 
---- Também não. Tenho uma toalha aqui, você pode pôr no rosto.
---- Temos que sair. Estou ficando sufocado.
---- Sair? Com esta confusão do cacete logo ali fora? 
---- Vamos sair juntos! De braços enganchados e pedimos abrigo ali no camburão da PM. Minha garganta está ardendo. Seca!
---- Mas cara, eu não sei se é melhor sair!
Nisto, um tijolo lançado por algum manifestante de algum lado atinge o vidro, mais uma, e outra mais. Estilhaçando-o e formando aquilo que pareceria um mapa hidrográfico visto de cima de tantas eram as ranhuras profundas. 
Olharam-se novamente.
---- Nem sei seu nome. Meu nome é Venâncio.
---- Antônio. Acho que temos que sair mesmo, concordo com você. Se ficarmos aqui podemos ser massacrados e atingindo por estes tijolaços.
---- O vidro não vai aguentar muito mais tempo. Assim: vamos sair correndo e logo viramos à esquerda. Uns 30 metros e podemos nos salvar.
---- Estou suando igual um porco.
---- Também. Vamos, agora!
Mochilas nas costas, um braço dado no outro. 
Foram juntos porque entenderam que sozinhos poderiam não conseguir.
Saíram. Quem os visse, tirando todo o contexto em volta, poderia pensar que ou formavam um casal de dois homens, ou, mesmo um sendo negro e outro branco e que, mesmo assim, poderiam ser irmãos tamanha a semelhança física entre ambos, faziam alguma performance/brincadeira quase em frente da Igreja da Consolação.

Não conseguiram chegar ao objetivo. Aquele que vinha dos Jardins foi atingido por um pedra bem no cocuruto fazendo-o bambear as pernas e cair ensanguentando o asfalto; agora amigo das horas mais tenebrosas, o puxa pelo casaco gritando por ajuda.
Ao vê-los, um manifestante com o rosto coberto pela metade passo ao lado e ainda se interpõe peitando o "resgate".

---- Deixa este mano aí! Deve ser mais um bagunceiro. O pau vai comer ser você não fizer nada. Larga o comunista aí e vamos continuar a briga!

---- Que briga? Tá bem louco seu idiota! Ele é meu amigo! E porque é negro tem que morar na periferia? Eu moro na ZL e sou branco. Estou tentando ajudar e depois ir para o meu trabalho. Saia da minha frente! Meu amigo precisa de ajuda!

E começam a brigar rolando pelo chão. Ainda estendido sentindo o cheiro de asfalto novo misturado com o gás, Venâncio abre os olhos em meio ao sangue que escorria e vê a briga; tentando se levantar, outro manifestante o segura pelo ombro.

---- Deixa estes dois branquelos aí se baterem! Vamos que eu te ajudo, negão! Somos irmãos de cor! Da periferia Os dois "playba" aí que se matem!
---- Para com isto! Ele é meu amigo! Que irmão o cacete!

Possuído pelo sentimento da ira de sobreviver, Antônio parece que esqueceu a dor e começa outra briga ao lado da primeira. Briga suja e desleal como convém à polarização, à raiva e à intolerância. 

Os dois, que nunca haviam se encontrando; os dois que fugiam ao estereótipo do "branco dos Jardins e do negro da ZL"; os dois que se encontraram no fim: depois de mais um tempo de confronto, dois corpos permaneciam no chão. 
Jaziam dois corpos estendidos, mesclando os sangues: em uma amizade que, fugindo a todas as expectativas, se formou ali, no fim de tudo. 

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