quarta-feira, 8 de junho de 2016

VIAGEM CCLXXXV - PROBLEMAS, LARANJAS E O JOÃOZINHO

Arquivo pessoal, Rua Teodoro Sampaio, SP
Acordou cedo, antes mesmo do horário habitual e, sem vontade de voltar para a cama, iniciou logo nos afazeres prazerosos do dia, ou melhor, preparar o café da manhã, zanzando pelo espaço. 

O cheiro do pó de café evocava um tempo tão anterior e o levava diretamente à infância com a família - composta por ele, uma irmã e pela mãe tão-somente - reunida para o longo dia de trabalho e luta.

À época ele não lutava. Bem, lutava e muito. Para quê? Para conseguir entender a matemática ensinada na escola. Todo dia quedava-se uma briga renhida quando a professora (dona, como todos deveriam chamá-la) escrevia na lousa com giz e com letras grandes a palavra "problema". E lá vinha o tal Joãozinho que possuía duas dúzias de laranjas querendo dividir entre ele e mais dois amigos, mas cada um deveria ter uma laranja a mais que o outro: nunca era uma repartição simples, puramente simples. 

Mas antes, na hora do banho (ainda não executava o banho completo, o que viria a ocorrer alguns anos depois), ele já podia sentir o cheiro do líquido preto espalhando-se pela casa. A mesa posta: pão, manteiga, um pedaço de bolo feito na tarde de antes, o leite com café na xícara, açúcar e uma banana, em geral, nanica. Terminava  de se vestir com seu estômago morrendo de fome e, ainda ajeitando o uniforme sentava-se à mesa. Falante e entusiasmado, ele também tomava uns goles de café preto. "Mãe, na minha classe só eu tomo café puro! Igual meu pai, né?". A mãe, ainda ressentida com Deus pela morte prematura do marido, assentia com a cabeça disfarçando uma ponta de desgosto que poderia ser colérico. 

No dia que tinha marcado prova de matemática, ele não queria se levantar da cama; a mãe, diligentemente, o puxava arrastando-o. Neste mesmo dia não queria tomar banho e lá vinha ela "jogando-o" debaixo do chuveiro quente. Toda vez ele inventava uma dor, uma possível febre... Tudo para escapar da famigerada e odiada prova de matemática, geralmente composta de cinco problemas, mais algumas contas a serem resolvidas.

Hoje, xícara pelando nas mãos, fumegando, andando pelo apartamento na fria manhã de junho em São Paulo, ele pensa que gostaria de ter uma prova de matemática com cinco... Não, poderiam ser 20, 30 problemas que não seriam problemas nenhum. Tanta responsabilidade, tanta conta para pagar, tantos fatos a serem resolvidos, egos e vaidades a serem administrados, complexos... Findando o café, vestir-se-á com o terno de impecável caimento e deparar-se-á com todos os problemas do dia a dia de um adulto. Verdade: ele tem preparo para tal e não deseja uma volta à infância... É que a saudade vem, se instala e aperta o peito às vezes. As horas do dia se encarregam de afastá-la logo que sai de casa. 

Nunca mais ele soube do tal Joãozinho que não sabia como dividir as laranjas com seus amigos. Talvez ele tenha morrido pelo caminho. Ou melhor, pode ser que ele ainda esteja tentando dividir seu pequeno tesouro com os amigos em uma abafada tarde de verão.

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