quarta-feira, 28 de outubro de 2015

VIAGEM CCLIX - DO TÉRREO AO 35º ANDAR

Reprodução [endereço abaixo]
Mania de contar os degraus veio se sofisticando e logo era aos pares, depois em trios; e tinham modas de, por exemplo, calcular de trás para frente. Consistia em analisar e mentalizar um número e decrescê-lo até chegar ao fim da caminhada sobre os degraus. 

Sobreveio o tempo de calcular - em um relance apenas, porque senão ficava fácil e acertava sempre se ficasse parado olhando - quantos teria que subir ou descer. Verdade que a contagem para descer lhe tomava mais tempo e os erros desta categoria apareciam como um pouco maiores que os de subir. À época de "chutar" um número, de novo a contagem da descida sempre se fazia mais complicada.

Mas em um relance, apenas, olhava. Gostava das escadarias grandes, em vários lances. Descobrira pouco tempo atrás as escadarias da 9 de Julho, Viaduto Jacareí, na Bela Vista.
Todos os degraus pelo qual ele deveria passar... Ele contava e passado certo tempo de treino, até dez degraus, tal contagem nem entrava no exercício - muito fácil. 

Certa vez em um fim de tarde de chuva torrencial, indo visitar um amigo que morava no 35º andar, resolveu subir pelas escadas quando lá chegou só para ter certeza que nenhum deles faltaria. Parecia-lhe uma tarefa até que simples, porque entre um andar e outro o número de lances deve ser o mesmo (é o que se supõe...?) e por conseguinte, o número de degraus também o seria.

E então iniciou a escalada pela maior escadaria que já havia pisado: mármore levemente avermelhado com manchas sinuosas brancas, friso dourado na beirada, o corrimão com textura suave, brilhando de limpo... 
Todo este aparato o atraiu sobremaneira.
Ao pé da escada, no térreo, com o zelador olhando-o como um louco - ou idiota, talvez - ele já se decidira. 
---- O senhor tem certeza que vai subir a pé? Pelo elevador é rápido e não cansa nada, nada. Prático.
---- Tenho. Eu preciso ir.
A luz esmaecida tornou tudo mais imperioso. 

Começa. 
Salão de Festa A uma festa de aniversário.
Salão de Festa B tudo em silêncio.
1º, 2º, 3º e 4º foram galgados com rapidez assertiva.
5º andar uma briga de duas crianças.
7º andar cheiro de bife fritando.
Nada de se cansar. A chuva lá fora se intensificava.

10º andar ele vê a luz piscar pela janela de luz que dava para o prédio ao lado.
11º andar seu fôlego se altera, mantendo um ritmo mais lento de subida.
15º andar dois rapazes fumam um cigarro de maconha.
---- Não obrigado.
17º andar o cheiro e a risada do 15º quase imperceptíveis; peito começa a chiar.
18º um breve descanso de 3 minutos, sentado, mas ainda sem arfar feito um cão.
21º andar arfando certifica-se que sua bombinha contra a asma está no bolso.
22º andar ele tem que sentar de novo; três borrifos dentro da boca.
24º andar melhora com a ajuda do remédio.
25º andar pequeno cachorro passeia pela área comum do corredor.
---- Igualzinho ao que eu tinha quando era moleque.

28º andar depara-se com um casal fazendo sexo gutural na escada e parecia estar bom.
---- Desculpe interromper. Já estou indo embora.
31º andar prostra-se de cansaço físico, mas sem perder a conta dos degraus subidos.
32º andar mais borrifadas porque parece haver um gato dentro de seu peito.
33º andar tontura, dor de cabeça - um mal-estar generalizado, pintas roxas/pretas no ar.
(demora-se)
34º andar ele não consegue mais, pernas doem, brônquios não respondem.
(demora-se ainda mais)
35º andar desmaio à frente da porta de seu amigo.

O barulho seco da batida na porta desperta o morador que a abre e vê o amigo inconsciente e com o rosto de cor azulada. O visitante sua tanto que o outro escorrega na poça formada, causando um susto tremendo. Tremendo de nervoso, liga para salvá-lo.
Resgate chega em três minutos... Na portaria. Ainda sem energia elétrica, os para-médicos iniciam a caminhada rumo ao topo, ao 35º andar. Iam apressados.

http://ipadfiends.com/wallpaper/101/dark-staircase

Um comentário:

Unknown disse...

Belo conto. Faço-lhe uma leitura reflexiva da vida. Cada andar significa o tempo de cada um na passagem do tempo. Cada andar sinaliza a geografia do seu tempo no espaço da própria vida. E a cada momento e em cada degrau espreita-se um novo patamar sem saber o que virá. Podemos ver muito bem o que nos ocorre na vida vivida nesses 35 andares. Acontecimentos no mundo fora da gente e suas conseqüência atuando sobre nós. Qual será o devir? Apenas morrer ou haverá outros edifícios a subir?