domingo, 2 de fevereiro de 2014

VIAGEM CLXVIII - "PODE FALAR A VERDADE", ELE DISSE

Reprodução [endereço abaixo]
Pronto para o outro ouvir, ele se calou. Verdades devem ser ditas com grande simplicidade (mesmo que falte a cumplicidade óbvia dos amantes), sem pompa, tampouco circunstância. Porque, seja dito, amantes era mesmo o que nunca foram.

--- Porque está quieto? Pensei que estivéssemos aqui para que você falasse tudo o que queria. Estou aqui para escutar com muita atenção.
Silêncio de missa de 7º dia, no horário da tristeza, 18h.
--- Sem preparação alguma, só com sua suposta vontade de me ouvir, isto aqui não vai levar a nada vezes nada. Verdade que marquei este encontro para que nós pudéssemos esclarecer alguns fatos... Ou acontecimentos. Não sei se falo mais.
--- Experimenta, fala o que tem vontade. Sobre mim, não é? Prometo que fico quieto, deixo você falar até o fim. Ou até você se cansar. Melhor! Até você me permitir que eu também me manifeste. O que acha?
--- Claro, sobre você.

E então falou por cerca de meia hora impedindo com acenos de mão as tentativas do em interrompê-lo para manter a linha de raciocínio pertinente, sem as indefectíveis pinceladas afetivas, o que tornou a "coisa" toda muita mais complexa do de fato já era. Sim, o bicho de 7 cabeças tinha 8... Quiçá 9, parecendo uma Medeia mitológica de olhar perfurante. 

Porque para falar o que tinha em sua cabeça - tudo muito bem analisado, preparado previamente - impossível era não ter a conotação de proximidade, do cuidado que as tais verdades propunham e que por certo causariam alguma reação. Esta ainda, ele não previra.

Espantou-se com a calma exterior que aparentara durante o "discurso". Apenas o suor a escorrer dos sovacos cabeludos poderia denunciar seu nervosismo, mas tomara precaução, aliás a única delas, em levá-lo para conversar em lugar de sombra, com vento, no alto, varanda. Pingavam pelas laterais do dorso para encontrarem abrigo na calça jeans.

Durante sua fala, preparada porém não decorada, o outro também, atento quedou-se; apresentou o ouvinte certo nervosismo: cruzava e descruzava as pernas, ajeitava-se na cadeira de metal, chegou mesmo a derrubar a garrafa d'água no seu interlocutor e coçava a barba quase espessa à exaustão.

--- Acabei, disse tudo.
O ouvinte se levantou com um peso nas costas inédito. Quieto, virou-se e coçando a barba pensou como a verdade pode ser perversa, inquietante e reveladora.

--- Tudo aquilo que ele me falou serve para mim, serve para minha vida. Serve para todo o tempo. É tudo mesmo verdade, por isto decidi vir embora, sem chances de ficar lá olhado para a cara dele, para cada parte de seu rosto. Só ia servir para mais constatar as verdades... Que esqueci e tranquei dentro de mim... Fiquei sem ação.

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