sábado, 29 de julho de 2017

VIAGEM CCCXXVI - UMA DOSE DIÁRIA DE "DEMÊNCIA"

Arq. pessoal - Avenida Paulista, São Paulo
---- Um demente, é isto o que ele é. Nem converso mais com ele. Só um idiota e demente para agir desta forma.
---- Por que motivo você diz isto?
---- Eu não digo. Eu reafirmo. Venho dizendo isto faz tempo já. Só mesmo quem é muito distraído, ou na melhor das hipóteses, só quem é muito ingênuo para não perceber. Por favor!
---- Tenho uma visão distinta. Diferente mesmo. Olha só, vou enumerar alguns itens...
---- Itens? Esta é boa. Combina bem com o cara ali. Veja só, que cara mais contente, sorridente. 
---- Bem, ele tem todos os dentes da boca. Branquíssimos. Boa arcada. Barba distraidamente bem feita. Então, no caso dele, sorrir é um ponto a mais, não a menos.

Cara de fastio e um muxoxo ininteligível ao ouvir a última afirmação rápida do interlocutor. Ambos miravam tudo o que o "demente" fazia, observavam cada gesto e cada atitude. Porém cada perspectiva era diametralmente diferenciada uma da outra; bem como as razões para tal perscrutação.

---- Os itens! Vamos a eles? Perceba: ele tem amigos, ele namora, mora em uma casa boa e própria. Tem dois livros lançados e foi convidado para participar da Semana de Estudos Literários em Língua Portuguesa.
---- Onde? Em Lisboa?
---- Aqui mesmo em São Paulo.
---- O demente está desamparadamente desempregado. Total demérito.
---- Aprendendo fonemas com "DE", "M", palavras grande? Destilando doses cavalares de desdém? Está vendo? Também sei lidar com os fonemas.

E riu. E viu-se uma cara feia para o algoz do demente. Ainda rindo, entre os dentes, praticamente gargalhando, o outro continua a história.
--- Desdém: é isto. Quanta inveja, não é? E parece que você vem alimentando dia após dia este sentimento que deve amargar sua existência. Percebe que fazendo isto você se diminui aos olhos dele? 

---- Faz meses que ele está desempregado. E me falou que nem sabe se vai poder participar da 
organização da semana de estudos. Só mesmo um demente, bem longe da realidade, pode se julgar feliz estando nesta situação. Nem falo mais com ele.
---- Segunda vez que você fala que não fala mais com ele. Que vontade você deve ter de poder abraçá-lo de novo.

O outro pronto para responder diante da "fator abraço", mas o outro não deixa e continua.
---- Entendi tudo. Terminaram, quer dizer, ele terminou o que mal vocês haviam começado porque sua carga de negatividade enfraquece qualquer relacionamento. E você ainda gosta dele.

De raiva, o outro começa a chorar em meio à verdade que acabara de ouvir.
---- Porque se amargar diariamente assim? Todo dia você se auto-medica bebendo apenas o amargo que a vida oferece? E olha que a vida oferece tantas coisas.

O outro chorando, tenta balbuciar algo. 
---- Eu ainda amo, ainda quero abraçar, quero ter por perto. Mas ele nem quer saber de mim. Irrita tanto esta felicidade demencial que ele tem.
---- Revelador. Tudo o que disse é muito revelador. Pare com as doses de amargura.

Comoveu-se com o pranto escancarado e abraça para tentar um alento, pequeno que fosse, para minorar todo aquele sentimento de desdém, misturado com querer, com tristeza. Compadeceu-se pela carga viral exacerbada de amargura que acabara de presenciar.

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