terça-feira, 8 de março de 2016

VIAGEM CCLXIX - O ESPIÃO QUE NÃO EXPIAVA

Reprodução sem fim lucrativos [endereço abaixo]
Pela pequena fresta, ele espiava todo o movimento da grande avenida de 3 pistas, sentido centro/bairro e vice-versa. E sempre tem versa, ou melhor, versus, no caso dele. Ele versus a vida que ele, de uns tempos para cá, espiava pelas pequenas frestas da janela... Entreaberta o mínimo possível. Ele versus ele: que luta renhida!

Talvez para expiar algumas culpas do passado recente, ele apenas espiava os carros e as pessoas no segundo andar do sobrado, um dos poucos que sobrara depois do arranque desenvolvimentista imobiliário do começo do milênio naquela região de São Paulo onde se misturavam residências, prédios comerciais e pequenas lojas sobreviventes.

Pela fresta, ele percebia - espiando - que mesmo após a construção de três grandes arranhas-céus, a rua conservava conservadoramente um ar interiorano, com aquela preguiça modorrenta de uma tarde de calor de verão extremado com o bucho cheio.

Tinha tantos receios de sair e viver as ruas. Então, ele espiava com boa visão de mais de 180° porque sua casa localizada em uma esquina, tinha o segundo andar em formato arrendondado. Ali, ele havia posto uma cadeira quadrada confortável, de quinas assassinas, que lhe permitia recostar-se e observar pela fresta.

Parecia que ele espiava os outros para se satisfazer da vida do mundo, mas se tivesse alguém atentado para o atentado que cometia todos os dias contra sua existência... Só parecia. Ele espiava lá fora para que o "lá dentro" intocável permanecesse. Ficava horas e horas na intocabilidade da posição logo atrás da janela, pela fresta, apenas se espreguiçando vez por outra; com os olhos abertos para que nada lhe escapasse.

Seus vizinhos contíguos eram os menos vigiados... Bem, espiados, como ele preferiria se soubesse que alguém escrevera sobre ele. Gostava de observar quem entrava no prédio quase em frente e quem transitava pela rua: vendedores variados engravatados, skatistas quase esquálidos ralados, mulheres "aos milhares" (havia ali perto uma grande loja onde se empregava somente o sexo feminino), cachorros corredores atrás de objetos...

À noite, era comum acabar adormecendo na cadeira. Seguia, quando acordava para a cozinha, fazia um café para desperto ficar e voltava ao seu posto. Nas madrugadas, ele via casais trocando mais do que carícias em carros suados, rapazes fumando maconha e rindo, o vizinho da direita traindo a noiva com o vizinho duas casas depois à esquerda, o casal que brigava aos berros no silêncio do horário. 
Um sorriso ele conferia e ele mesmo: era bom viver assim, apenas espiando os outros... Assim não dispunha de tempo para expiar sua ausência dele mesmo.

http://tehparadox.com/forum/f63/%5Brg%5D-top-christmas-movies-all-8889455/

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