terça-feira, 16 de agosto de 2016

VIAGEM CCXCVIII - REDESCOBRIR

Verdade que em São Paulo não há vampiros porque aqui não é Transilvânia, tampouco existem altitudes elevadas quanto a cadeia de montanhas - Cárpatos -  que está por lá no único país do leste europeu de língua latina; em termos de Terra Brazilis, estar quase a 800 metros acima do nível do mar é quase estar na nuvens. Mesmo que estejamos sob o imaginário trópico de Capricórnio, subtropical e o que isto tudo (pode) significar.

Arquivo pessoal - Parque do Carmo/São Paulo

Nas nuvens ele esteve quando começou a entranhar-se visceralmente pelas ruas da cidade e seus pontos claros e escuros, os limpos e os fétidos, os lugares de família e os lugares dos desparceirados de pudores quaisquer que sejam. Importou-se tão-somente a descoberta à época - e que até o seu fim foi o que mais lhe aprouve. Porque - assim escolhera - descobrimentos e redescobrimentos tornaram-se possíveis à vista e ao toque facilmente. Rapidez em saber e múltiplas escolhas para ter.

Andar até praticamente à exaustão fora uma solução provisória para os pensamentos turvos que não saiam de sua cabeça. À prostração física juntara-se a necessidade de dormir em seguida. Em uma das andanças - a maior de todas que tem lembrança - de mais de horas, ao passar pelo antigo lugar que morou bem longe do atual endereço, ali na soleira do pequena prédio, ele viu um cadeirante com dificuldade de manobrar a cadeira e assim poder subir pela rampa improvisada. 

Incontinente, ele se ofereceu para ajudar.
---- Agradeço, mas não carece não. Tenho que conseguir.
---- Tudo bem. Parece que esta rampa acabou de ser feita. Sei lá, parece mesmo.
O homem, em seus quase 40 anos, parou e anuiu com a cabeça. 

---- Tem razão. Só que até ontem esta rampa nem existia. Eu comprei o apartamento aqui. Claro, o térreo, ali no fundo do corredor. Aliás, tem até um quintal com duas árvores pequenas para os meus gatos poderem brincar. Sabe, eu sempre passei por aqui e nunca havia parado sequer para olhar. Até que um dia, o meu segundo gato, de rua, me viu rodando pela calçada - que por sinal, até que está boa - e pulou na hora no meu colo. Estava fugindo de um cão, eu acho. Ele tremia igual vara verde.
---- Nunca tive gatos. Sempre tive cachorros.
---- Também gosto muito. Aí, depois do incidente felino, olhei na porta e vi uma placa de "vende-se". Resolvi comprar. Foi uma redescoberta em meu caminho de anos.

Finalmente, depois de certo custo físico, o homem logrou êxito e pôs-se em cima da calçada no nível do térreo. 
---- Comprei faz 4 dias. E pedi para fazerem uma pequena rampa, provisória pelo menos, porque segundo a síndica, muito simpática, amanhã mesmo vão começar a construir uma acessibilidade melhor e menos inclinada.
---- Muito bem. Fez valer os seus direitos. 
---- Mais do que isto, não desisti do apartamento, mesmo quando tiveram que me carregar para eu poder vê-lo todo. Cara, na hora que entrei, eu resolvi comprar. Foi uma redescoberta e ao mesmo tempo uma descoberta. Aí vem ele, meu nego todo dengoso.
O gato, todo manhoso, aninhou-se no colo, acariciou as pernas de seu tutor e deitou-se placidamente não tendo ouvidos nem olhos para o mundo externo.

Despediram-se. Ele ainda olhou para trás e os viu felizes. O homem o olhou e acenou com a mão e fez um sinal com o polegar. Ele que sempre passara por ali, desgostoso, descontente e saudoso, agora portava no bolso suado da calça de moletom o cartão de visitas do profissional de TI. O cara que redescobriu um local e não desistiu diante de uma adversidade séria e impositiva. 

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