sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

VIAGEM CCCXXXIV - A VOZ DO BICHO-PAPÃO

Arquivo pessoal - São Paulo
as vozes amarravam-no dentro de si mesmo, dia e noite, noite e dia, de segunda a segunda, de janeiro a dezembro, desde a infância até... Bem, até agora, como veremos a seguir nestas linhas desconexas - texto feito pela sua vida de ouvir vozes do alto de não sabe de onde. Ele sempre achava que vinha de cima, mas não do céu: de cima da sua cabeça - do cocuruto. 

primeiro, lá trás, bem lá mesmo
infância, pelos 8 ou 9 anos
vozes vinham lhe sussurrar aos ouvidos quando ele ia para a escola, ali no antigo pré-primário, classe cheia, bagunça, corre-corre e vozes da criançada em alto tom. Esta, por sua vez não apagava a voz interior - ou exterior como ele julgou décadas passadas.

"hoje vai ser bem chato, bem mesmo; e todo dia será chato até daqui por fim da vida...
só você tem que ir porque senão você cai lá no fundo do poço com o bicho-papão, ele vai levar embora dentro de um saco. E sei lá pra onde. O que sei é que você não volta para sua casa e vai embora com ele. Também sei lá onde ele mora."
e ele ia, ouvindo, sozinho

ninguém mais ouvia pelos 2 quarteirões que separavam do grupo escolar - erguido em 1917, nome de ex-governador, todo pintado de um tom areia, muro hoje pichado por aqueles que se julgam sabe-se lá o quê; o tal prédio era tombado pelo valor arquitetônico - da velha casa construída em 1929: porão, assoalho e teto de madeira, quintal cachorro, portão de tramela simples, laranjeira e limoeiro que logo morreram e a jabuticabeira, forte e troncuda...
na cidade do interior, onde nascera, dezenas e dezenas e dezenas de quilômetros 
longe de São Paulo

de noite, quando ia dormir, olhava debaixo da cama e... Nada.
Nada da voz
nada de bicho-papão
deitava, então,m a cabeça loira de 4 olhos no travesseiro grande, tão grande
que cobria sua cabeça
e aí vinha a voz

"Dorme bem, dorme até amanhã e aproveita porque depois de grande
você quase não vai conseguir. Mesmo que consiga, não vai poder"

ele não entendi porque não podia dormir quando ficasse grande
via seus irmãos maiores dormirem horas e horas

"Agora, vou cantar uma daquelas cantigas para você dormir e pra dormir logo
porque amanhã tem prova de matemática e seu professor não gosta de menino que se atrasa
e você sabe, antes de dar a bronca, ele tira os óculos e fica os limpando com aquele lenço encardido"

E cantarolava como ninguém havia feito em toda a sua vida.. De nove anos.
Dormia a sono solto, talvez com a companhia - única - do bicho papão... Pegou simpatia por ele, e aos anos mais tarde foi embora junto com o tal. 

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