terça-feira, 31 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXXIII - AS JAULAS INVENTADAS

Arquivo pessoal - Teatro Municipal de São Paulo
as jaulas inventadas em que colocamos os animais foram inventadas pela espécie mais inteligente e ao mesmo tempo a mais nefasta;

as jaulas inventadas pelo homem para demonstrar e reafirmar a discutível superioridade de nosso cérebro só expõe ainda o longo aprendizado que teremos que ter;

as jaulas inventadas servem para que nos sentimos superiores em razão da nossa capacidade de raciocínio auferida pelo tamanho grande e relativo de nosso cérebro é de uma pequenez humana;

que sensação é esta de superioridade que nos evoca o direito de praticamente exterminar outras espécies para que possamos então enjaular os derradeiros que sobraram?

que raciocínio é este? raciocínio da ingerência máxima sobre natureza? ingerência que pressupõe domínio? domínio que leva ao extermínio? extermínio com vistas a satisfazer a ganância?

a ganância, claro! Chegamos ao ponto primeiro; claro, a ganância pode estar travestida de curiosidade e , pode estar travestida também de sentimentos nobres (?) de preocupação com determinadas espécies em vias de extinção; ou seja: é uma mixórdia humana para consertar - tentar um conserto - erros que ainda cometemos;

as jaulas inventadas pelos homens... Que prerrogativa é esta de sempre nos considerarmos o supra-sumo da superioridade? Ou o que é pior (se é que isto é possível): arvorarmo-nos de sermos a quinta-essência de Deus dentro de nós por Ele ter dotado o homo sapiens sapiens de inteligência elevada, alma e espiritualidade  únicas?

então é isto? Somos os mais filhos de Deus porque somos feitos à sua imagem e à sua semelhança Dele? Vindos de um sopro divino que transforma-se - vejam só - em especismo? 

não, isto nada tem a ver com o sopro divino...

esperem um instante... Voltando às jaulas inventadas. Que tipo de ser vivente faz o que os humanos fazem com os categorizados como inferiores? 

pensando um pouco mais ao olhar à nossa volta: temos as jaulas (palpáveis ou não) para muitos inocentes; torturamos, judiamos, matamos por ódio e preconceito, exterminamos por ganância, guerreamos guerras injustas, jogamos crianças janela afora, espancamos idosos, estupramos... A lista é um sem-fim de atrocidades.

agora entendo as jaulas inventadas pelos homens para que animais vivam dentro delas: fazemos pior com os da nossa espécie. 

então, inventar jaulas é "apenas" mais uma atrocidade contra os seres que "sequer" têm alma e são selvagens sem raciocínio.

o que é pior? Não há "um pior": tudo é muito ruim.

domingo, 29 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXXII - AOS HOMENS QUE RESPEITAM = A ABSOLUTA VERGONHA

Arq. pessoal - Praça do Patriarca, Centro SP
o avanço sem consentimento = estupro

a cantada sem nenhum tipo de contexto = estupro

a cantada com algum tipo de contexto não permitido = estupro

o assédio antes de se consumar o ato = estupro

a desculpa da roupa justa = estupro

a desculpa pelo modo de vida e companhias = estupro

instinto que não se controla = estupro 

mentira escrita logo acima = estupro

prazer pela violência, poder e dominação = estupro

ela é "da vida", ou drogada ou bêbada = estupro

mostrar superioridade viril e masculina = estupro

achar que ela merece porque é mais frágil = insanidade

achar que você tem que ter o gozo porque é mais forte = insanidade

tratar mulheres como "esta é para casar e esta é para foder" = insanidade

machismo e desprezo pelo sentimento das mulheres = insanidade

argumentos "eu sou homem e posso" = insanidade inequívoca

homens de bem, homens que são a maioria = a luta ao lado das mulheres

homens de bem contra o estupro = aliados necessários, aliados importantes

para estes homens solidários a certeza da humanidade = homens e mulheres com direitos a direitos iguais

há que se mostrar mais que solidariedade = repúdio, asco e luta no dia a dia para sempre

Mas o maior sentimento é a vergonha. A absoluta vergonha para que se possa, então, pedir perdão a elas pelo tempo que for preciso

quinta-feira, 26 de maio de 2016

51] CENÁRIO SP - "OLHA A HORA!"

"'VAMBORA', 'VAMBORA', OLHA HORA!"

Arquivo pessoal - Av. 23 de Maio vista do Vd. do Chá

Sinfonia típica de São Paulo; sinfonia mítica da cidade-alfa do Brasil; a música de décadas que faz um resumo (ou ao menos tenta fazer) da cidade dos 12 milhões, do mais de meio trilhão de reais, onde passa o trópico de Capricórnio.

Por aqui não se pode parar porque não é bom "negócio" estancar a caminhada, seja para Parelheiros, seja para o Brás, seja para o Tremembé e seja para o Jaguaré. Seja para a Sé! 

Mas para ir a estes e outros tantos lugares, qual é a hora? Ora, a hora são todas as 24h da cidade que não para, da cidade que não dorme, da cidade que é o trabalho personificado.

E aqui, em todos os dias, em todas as semanas, em todos os meses e em todo o tempo de todas as eras cabe o mundo todo, dos quatro cantos do redondo planeta: tem sangue português, tem sangue italiano, tem sangue libanês. Tem o sangue africano, tão brasileiro e tão paulista e paulistano como o branco, como o sangue vermelho dos índios guaranis.

Sangue japonês, espanhol, chinês, coreano, boliviano, angolano, grego, alemão que corre pelas artérias de asfalto para "São Paulo crescer". E o que mais tem?

Tem todo, mas todo mesmo, o interior paulista: dos canaviais de Piracicaba, dos laranjais de Ribeirão Preto, dos cafezais da Alta Mojiana; tem também os caiçaras do litoral norte, do sul e, claro, tem os santistas; tem os paulistas da metrópole Campinas. Do médio Tietê, rio símbolo que corta o Estado de São Paulo trazendo o sotaque do "R" retroflexo caipira para a capital.

Por aqui tem ainda as mulheres e os homens das barrancas do Paranapanema, do Noroeste Paulista e tem, logo ali, o pessoal sul-matogrossense, estado solidário em 1932. Aqui tem os santos do Grande ABC formando a conurbação paulistana dos 21 milhões. E a gente do Vale do Paraíba, da Serra da Mantiqueira? Também tem!

E depois disso ainda tem mais?
Claro que tem! Na única metrópole alfa do hemisfério sul: tem baiano do rio São Francisco e dos cacaueiros de Ilhéus, tem mineiro de Poços de Caldas e de BH claro! Tem paranaense de Londrina, tem gaúcho da Campanha; e tem o pernambucano de Olinda e de Petrolina. Cabe mais? Tem paraense de Marajó, tem goiano do Planalto Central. E dos seringais do Acre? Que pergunta descabida: claro que tem!

E tem mais do Nordeste de sol e de suor: o Cariri é aqui, o Gurgueia é aqui e os quase franceses de São Luís vêm para cá. Logo dali, a 450 quilômetros a nordeste vem os cariocas que (re)descobrem a Pauliceia - a toda hora - que atordoa e que desvaria a todos eles (e a todos nós).

Quanta gente, quanto amor, quanto trabalho no frio do amanhecer/anoitecer, nas tardes de ventania de agosto, no sol a pino de dezembro, na chuvarada de fevereiro. 
Paulistano vai, volta, vai de novo, debaixo da garoa, da bruma dos dias de outono. Apressado pelo metrô, pelos ônibus e carros (os milhões deles) canta o samba de Adoniran, o rock de Rita e a sinfonia de Billy. 

Gentes de todas as idades, cores, etnias, religiões; homens e mulheres que se amam, homens que amam homens, mulheres que amam mulheres; crianças pelos campos da várzea, os descolados do Baixo Augusta, a mistura de todas as idades no espaço livre de todos da Praça Roosevelt...

Bom dia, boa tarde e boa noite, com licença, perdão, até mais a São Paulo, aos paulistanos não importando se você nasceu na Mooca "bello", em Brasília, em Vitória... Em Dacar ou em Porto Príncipe: a todos nós os meus cumprimentos porque fazemos daqui a cidade mutação - São Paulo.

Porque descrever São Paulo é tarefa inglória tamanha a falta de palavras e tamanha é a cidade, verdadeira capital do Brasil em sua mescla de povo brasileiro, do mundo; é tarefa ingrata porque a gratidão que se sente nunca poderemos saber como retribuir.

Trabalho honesto e digno, a informação dada ao motorista de fora no semáforo, jogar o papel de bala no cesto, a esquerda livre nas escadas rolantes, o respeito ao pedestre na faixa... Tudo isto podemos fazer e agir para São Paulo, que "às 7h explode em multidão".
Amor paulistano, amor paulista e o amor brasileiro: Pauliceia  Desvairada, São Paulo meu amor maior.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXXI - LANGUIDEZ DE UMA LESMA

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca, São Paulo
Veio desparceirado o número 1, quando chegou em suas mãos/olhos, da página 2 e da 3... 

Não entendeu nada no começo com "lesma, carmim e a languidez repetida". 

O que significaria palavras tão díspares? Quedara-se vendido 'no lance' como jamais imaginara. 

Estava ansioso para que chegassem as partes faltantes porque o interesse só crescia na medida que mais pensava sobre tudo...

"... languidez de seu corpo,

igual a velocidade de uma lesma de jardim,

em cada movimento torto,

em um caminho de profunda cor carmim

sem as roupas, com as vestes do suor

a deixar seu muco brilhante a cada raio de sol

atravessando quintais, cimentados chão com velocidade mor,

invadiu minhas narinas com um hálito de mentol 

languidez ao falar, ao se expressar em uma preguiça demorada

languidez àqueles tempos de juventude tardia, 

em dias que o tempo se arrastava com ânsia em passar demorada

nem tanto sadia

apaixonei-me, entreguei-me em uma sedução

que faria soar a ousadia como

muito abaixo de todo amor, um sentimento de porão...

ele não sabia o que se daria em um futuro longínquo,

sabia que agora, proximamente, testava tentando ser feliz

languidamente, placidamente...".

domingo, 22 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXX - UM CALOR PARA OS PÉS

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca/São Paulo
Vindo da noite anterior, abriu a porta quase de manhã com os pés molhados pela chuva, pelas poças; fazia tanto frio que ele achava que se escorregasse no paralelepípedo da rua em frente quebraria todos os ossos do corpo enregelado. 

Pendurou o casaco úmido, descalçou os sapatos, os dois pares de meias úmidos e sentiu o carpete da sala trazer algum conforto para ele.

O que mais queria na vida, àquele momento, era a imensa caneca de café fumegante a lhe esquentar. Vibrou com a confortadora ideia e, mesmo sonolento, com frio e fazendo uso de uma toalha felpuda para se secar, começou o preparo do líquido preto.

Tirou a camisa, a camiseta e passando pelo corredor vestindo somente a cueca branca em frente ao espelho parou por um átimo; nem quis ficar se olhando porque o frio de maio o abraçava feito uma constritora. E era a hora, 5h15, que a madrugada mais judiava dos desavisados do outono: 7°C marcava o termômetro no terraço, ao lado da porta.

Parece que até os pelos das recônditas reentrâncias e alarmantes protuberâncias  se eriçaram ainda mais. Pelado, agora somente seus pés, já secos, sentiam o carinho do carpete limpo impecavelmente todas as semanas e seco; nem poderia ser o contrário porque crises de rinite não constavam na sua lista de desejos. 

Viu o quarto e a cama com os três edredons ainda macetados da dormida de horas e horas anteriores... A cama vazia, não é?

Deitou-se como veio ao mundo, mexeu-se um pouco, ajeitou-se e, quase sufocado pelas cobertas que trouxeram um alívio imediato, fechou os olhos cansados; pegava no sono no mesmo instante que punha a cabeça no travesseiro, como sempre.

Sonhou com viagens interestelares a bordo de uma cápsula confortável que cabia apenas ele. Passeou pelo vácuo universal e "aportou" em Saturno e, em seus grandes anéis, pairou observando-os. Sentiu-se imenso em tocar o que é formação de gás. Entretido em tentar sair do espaço de viagem para andar sobre os tais... Caiu; para baixo ou para cima ou ainda para qualquer lado? Foi impreciso porque se lembrou, ainda no sonho, que não havia estas convenções humanas de lado, de canto, de polo, de esquerda e direita, acima ou abaixo... 

Veio o frio na barriga pela queda. Acordou em súbito e sobressaltado. E, por estas "coincidências" que só mesmo a vida proporciona, soou a campainha; soía que ele, deitado, nunca atendia à porta. Nunca. Mas àquele dia atendeu pela fresta amparada pelo pega-ladrão.

E deveria ter atendido mesmo: pediu-lhe perdão, reclamou do frio no terraço, mencionou a saudade, mais uma vez o pedido, apertou-lhe as mãos e se disse um ser humano que erra muito e emendou, porém, que estava ali para reconhecer as burradas recém feitas. "Não é pouco, ele pensou. Sempre com a segurança arrogante habitual... Mas agora sem".

---- Eu errei, é verdade. O que eu posso fazer para que confie em mim?
---- Entra, estou morrendo de frio. Vou fazer um café quente. Suas mãos estão geladas.

Adentraram na casa e uma longa e pausada conversa teve início. Aqueceram-se com as xícaras de café e, em dado momento, abraçaram-se. Choraram misturando lágrimas e palavras, acariciaram-se. Não era tesão (ainda não), mas sim o puro afeto humano de um que reconhece a humildade do outro em reconhecer erros e de tentar repará-los. 

Deitaram-se juntos com os pés se procurando buscando o calor.  O que viria depois... Depois resolveriam.

terça-feira, 17 de maio de 2016

50] CENÁRIO SP - DOIS QUE SE ENCONTRARAM NO FIM

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca/SP
(a vida é assim: tem destas e sabe-se lá quantas mais ela tem...)

Sublimava quase tudo, até mesmo o apenas razoável salário que recebia pelo tanto de trabalho que tinha pelos meses que se seguiam de anos seguidos - não ganhava tão mal, mas era insuficiente. 

Vinha de São Miguel Paulista todo dia para Higienópolis onde trabalhava como garçom em um restaurante de comida japonesa; ele vinha da zona leste mesmo, já pais vinham mesmo do interior de Pernambuco.

Não sublimava quase nada, inclusive o reacionarismo burocrático das repartições públicas, onde tinha que ir nestes tempos de papelada de morte de seu pai, emérito no cargo estadual. 

Vinha do Jardim América todo dia para estudar na faculdade (sua terceira tentativa) de administração e marketing, localizada ali na Barra Funda; filho de uma artista plástica muito em moda nos anos 1990, sua família toda era de quatrocentões descendentes Paes de Barros.

Nunca haviam se encontrado; praticamente da mesma geração, ambos não sabiam, entretanto possuíam gosto para música parecidos, também gostavam de ir ao cinema e correr em parques. Sim, um no Parque do Carmo, outro no Parque do Ibirapuera. Até mesmo similares eram no porte físico e agora mais ainda no barba cerrada. Musculosos não eram, tampouco magros: um meio termo entre isto aí. Altura 1,80, pouco mais, pouco menos, bem próximos.

Inglês, natação, programas de computador, curso de roteiro de cinema; futebol, violão, técnico em mecânica, capoeira. Ambos distantes um do outro, ainda, como no passado.  
eis que, por fim, se encontram ali nas imediações da Rua da consolação, bem perto da Praça Roosevelt. Daquelas coincidências que vida prega - se é que se pode chamar um fato inusitado de coincidência - e só mesmo em São Paulo, a cidade da dúzia de milhões, ambos se esbarraram na entrada do caixa eletrônico do banco milionário de capital privado.

Ele, da área nobre, se sacudiu para não deixar cair o telefone do outro no chão.
---- Desculpe-me, estava distraído. Seu telefone, peguei a tempo.
---- Tranquilo. Estou com pressa e na correria, porque preciso pagar isto ainda hoje e ir trabalhar. A manifestação está descendo já está na Igreja. 
---- Manifestação? Eu pensei que eles estavam vindo da República.
---- São duas então? Hum... Isto vai se complicado. 

Sirenes, rojões, latidos, cavalos, soldados da PM e o grande murmúrio já próximo, como o da multidão que já se escuta com nitidez. Saíram do banco com pressa, mas foram obrigados a voltar incontinenti, os dois se estabacando no chão; a briga começara em três frentes: policiais versus os que vinham da Paulista, policiais versus os que vinham do Centro e, finalmente a mais renhida, o pessoal a favor versus o pessoal contra.

Correria, bombas de efeito moral, coquetel Molotov disparados, gás lacrimogênio. Trancados no caixa, separados da grande confusão por centímetros de vidro tão-somente, o que não impediu de o gás entrar e começar a pegar nas vias respiratórias. Olharam-se, depois para fora e viram que o embate estava se quedando mais e mais violento. Helicópteros.

---- Não estou conseguindo respirar. 
---- Também não. Tenho uma toalha aqui, você pode pôr no rosto.
---- Temos que sair. Estou ficando sufocado.
---- Sair? Com esta confusão do cacete logo ali fora? 
---- Vamos sair juntos! De braços enganchados e pedimos abrigo ali no camburão da PM. Minha garganta está ardendo. Seca!
---- Mas cara, eu não sei se é melhor sair!
Nisto, um tijolo lançado por algum manifestante de algum lado atinge o vidro, mais uma, e outra mais. Estilhaçando-o e formando aquilo que pareceria um mapa hidrográfico visto de cima de tantas eram as ranhuras profundas. 
Olharam-se novamente.
---- Nem sei seu nome. Meu nome é Venâncio.
---- Antônio. Acho que temos que sair mesmo, concordo com você. Se ficarmos aqui podemos ser massacrados e atingindo por estes tijolaços.
---- O vidro não vai aguentar muito mais tempo. Assim: vamos sair correndo e logo viramos à esquerda. Uns 30 metros e podemos nos salvar.
---- Estou suando igual um porco.
---- Também. Vamos, agora!
Mochilas nas costas, um braço dado no outro. 
Foram juntos porque entenderam que sozinhos poderiam não conseguir.
Saíram. Quem os visse, tirando todo o contexto em volta, poderia pensar que ou formavam um casal de dois homens, ou, mesmo um sendo negro e outro branco e que, mesmo assim, poderiam ser irmãos tamanha a semelhança física entre ambos, faziam alguma performance/brincadeira quase em frente da Igreja da Consolação.

Não conseguiram chegar ao objetivo. Aquele que vinha dos Jardins foi atingido por um pedra bem no cocuruto fazendo-o bambear as pernas e cair ensanguentando o asfalto; agora amigo das horas mais tenebrosas, o puxa pelo casaco gritando por ajuda.
Ao vê-los, um manifestante com o rosto coberto pela metade passo ao lado e ainda se interpõe peitando o "resgate".

---- Deixa este mano aí! Deve ser mais um bagunceiro. O pau vai comer ser você não fizer nada. Larga o comunista aí e vamos continuar a briga!

---- Que briga? Tá bem louco seu idiota! Ele é meu amigo! E porque é negro tem que morar na periferia? Eu moro na ZL e sou branco. Estou tentando ajudar e depois ir para o meu trabalho. Saia da minha frente! Meu amigo precisa de ajuda!

E começam a brigar rolando pelo chão. Ainda estendido sentindo o cheiro de asfalto novo misturado com o gás, Venâncio abre os olhos em meio ao sangue que escorria e vê a briga; tentando se levantar, outro manifestante o segura pelo ombro.

---- Deixa estes dois branquelos aí se baterem! Vamos que eu te ajudo, negão! Somos irmãos de cor! Da periferia Os dois "playba" aí que se matem!
---- Para com isto! Ele é meu amigo! Que irmão o cacete!

Possuído pelo sentimento da ira de sobreviver, Antônio parece que esqueceu a dor e começa outra briga ao lado da primeira. Briga suja e desleal como convém à polarização, à raiva e à intolerância. 

Os dois, que nunca haviam se encontrando; os dois que fugiam ao estereótipo do "branco dos Jardins e do negro da ZL"; os dois que se encontraram no fim: depois de mais um tempo de confronto, dois corpos permaneciam no chão. 
Jaziam dois corpos estendidos, mesclando os sangues: em uma amizade que, fugindo a todas as expectativas, se formou ali, no fim de tudo. 

sexta-feira, 13 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXIX - BREVE HISTÓRIA DA SUA ESCÓRIA

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca, SP
Mais um que chegou em seu endereço eletrônico sem que ao menos, novamente e sempre, ele soubesse quem o havia enviado; e-mail desconhecido, porém sem vírus... Quem poderia ser? Ideia de algum suspeito (a) ele teria? Vasculhava quem poderia ser, mas nada. "Talvez de algum aluno da oficina de literatura em prosa e poesia...". 

"da história uma memória
da escória que ele andava,
trupe frouxa de moral,
forte de físico,  cheio de marras e de cruel amarras;

sério, sem demérito, era
metido em truculências mil
crivadas de incríveis
preconceitos turvos,
de uma intrepidez em eterna vigilância;

até o dia (porque este dia adveio)
que vendo aquele franzino corpo
desconstruiu-se e, em seguida, lavrou
outros amores para aquele tal corpo
com o trabuco querendo meter-se em outros afazeres;

derreteu-se, e derretido que ficara
rememorava por onde andaria agora em diante,
já que daquela escória teria que se ver longe,
atracada às antigas docas 
podres e putrefatas;

perdeu-se de tudo por um tempo
porque o antigo rumo fora tragado para o ralo,
para o limbo de seu cérebro... Ele parecia ser outro porque...
A magreza daquele corpo o resgatou
da imensidão histórica da 'escória perfeita'...".

quarta-feira, 11 de maio de 2016

VIAGEM CCLXXVIII - A VIDA EM NÚMEROS

Arquivo pessoal - Praça do Patriarca/Centro SP
Alguns números o assustam, tamanha é sua impotência diante de alguns deles. E isto começou desde quando nasceu, em plena efervescência do "flower power", lá nas barrancas de algum rio do interior do estado de São Paulo: e sim, mesmo urbanizado por quase duas décadas na capital alfa do Brasil, a Pauliceia Desvairada, ele se auto intitula um caipira que se (re)descobriu na cidade dos 12 milhões. Nasceu prematuramente, de oito meses. E sempre ouviu dizer - não sabe se é verdade - que nascer de sete é menos perigoso que nascer faltando um mês. 
---- Mas agora estou aqui, já adulto.

Além da prematuridade, veio ao mundo sem chorar, o que lhe causou a primeira lição da vida daquela que vem com dor, despontou saído pelo método natural com apenas 45 cm. Hoje tem 1,88m. Talvez, se pudesse se ver logo que tivesse nascido, com a cara toda amassada, diria em bom som:
---- Este aí, que sou eu, não deve vingar...

Vingou. Mas alguns números, como escrevemos logo acima, ainda lhe causam espanto. Exemplos só corroboram o tal susto travestido de perplexidade. Fez o curso fundamental em 10 anos; tomou bomba nas duas últimas séries do antigo ginásio. E atente-se que ele não fazia parte da turma do "fundão" não. Já no secundário, ao contrário, passou ileso e incólume sempre fechando as notas no terceiro bimestre com nunca menos de 9,5 - e sua carteira era uma das últimas.
---- Foi a partir daí que começaram a me chamar de CDF. Hoje chamar-me-iam de nerd.

Ele teve que se aguentar, mesmo porque a possibilidade do revide, provavelmente, tornar-se-ia um fracasso total. Magro feito um espeto, igual a uma vareta, aos 14 anos já passava dos 1,80m, pesando nem 60 kg; causando piadas e somatizações advindas daquela. Branco e sardento que era (e que é), com algumas das espinhas espalhadas pelo rosto disputando espaço com a barba cerrada, firmara-se como o protótipo do adolescente desengonçado.; tropeçava amiúde com seus pés 41 (hoje calça 43).
---- Hoje minha barba espessa não precisa disputar espaço.

Hoje, passados os tais números, outros o preocupam. Contas, peso (com certo sobrepeso), senhas ("inúmeras senhas!"), contas bancárias, extratos, impostos... Quanto à performance sexual... Bem, a quantidade já importou mais e a qualidade era apenas uma consequência da quantidade. Ao menos tinha que aguentar três vezes em uma mesma "tacada" na cama.
---- Qualidade é mais gostoso de sentir e de ter, mas não dispenso duas vezes na quantidade se eu tiver tempo suficiente. 

A matemática da vida o assusta, é verdade. Salário de R$ 5.000? De R$ 10.000? Mais? Está prestes a ter um que alcance os - finalmente - cinco dígitos com uma razoável folga. Prometeram-lhe R$ 15 mil tão logo termine o 2º quinquênio.
---- Trabalhei quase de graça quando iniciei na profissão. Feito um burro de carga! Hoje ainda sou uma jumento, a diferença é que ganho até que bem. 

Quase morrera ao nascer, quase desistira de estudar, quase se adoentara ao longo das juventude, quase parara de cursar a faculdade. Quase... Quase...
Porém não! Fez o oposto de tudo isto. Nem sucumbira às rasteiras da vida. Rasteiras estas que foram e são muitas. E o número só se faz crescer ao longo dos dias de viver.
---- Melhor que seja assim. De tanto quase em minha vida, eu consegui. E eu consigo.